No universo de mundos mudos a bailarina surda conheceu a ostra que não gostava de pérolas.
Naquele lugar, cada qual tinha seu mundo. Nenhum algum ousava alçar voos de finais desconhecidos. Aqueles mundos eram mudos e ninguém sabia por quê.
Tampouco a bailarina gostava de pérolas, mas sua noção de pérolas se baseava em outras ostras que não eram essa ostra que não gostava de pérolas.
Porque aquela ostra fazia a bailarina querer pérolas.
A bailarina surda costumava dizer que não precisava ouvir ninguém. Tudo que queria escutar já soava em seu palato. Havia músicas que só a bailarina podia ouvir. Mesmo surda, ela vivia no eterno concerto de suas ideias.
A ostra dizia que já houve pérolas. Mas eram de difícil convivência e não podia deixar sua felicidade a mercê de objetos esféricos.
Uma achava ter o que queria ouvir. Outra achava que já havia havido o que podia haver.
O mundo da bailarina era um armário. Um armário de papel. Tão pesado por todos os segredos que carregava. Queria se aproximar da ostra, mas sabia que a proximidade molharia seu armário. O armário de papel rasgaria e a ostra poderia ver tudo que a bailarina escondia. Quem a bailarina realmente era. A ostra poderia ver a nudez das verdades da bailarina. Sua sensibilidade. Suas hiâncias. Saberia o que a bailarina queria.
Porque, apesar de todo o medo, a bailarina continuava buscando por desculpas pra se aproximar da ostra.
Temia que a ostra pudesse rir dela. Rir dos sonhos da bailarina. Seus sonhos de papel. Sua vida de papel. Caçoaria do que a bailarina trazia inscrito em sua alma. Embora amedrontada, puxava a ostra pra seu dançar sem ritmo. Sua valsa psicológica. Para a canção papel.
Que podia fazer a bailarina? A ostra dizia não saber dançar. Mas isso era tudo o que podia oferecer. Era tudo que podia tentar. A música. Quisera ela que fosse o bastante. Mas sabia, desde o início, que a ostra estava muito além de suas possibilidades.
O mundo da ostra era desconhecido. A Ostra não deixava ninguém espiar.
Porque a bailarina tinha uma estranha tendência de escolher corações blindados.
A ostra já havia dançado em outros carnavais. Com outros bailarinos que não eram a bailarina. Que não eram surdos. A ostra não vivia em nenhum armário. A ostra não tinha roupa de papel. Não, não, não. A ostra era belamente ornada e protegida de amores.
A bailarina era péssima com sinais. Julgava o que não era como sendo. Duvidava do que realmente era, limitando-o a podia ser.
Bela ostra. Ignorava que só através dos intrusos é que as pérolas nasceriam. Era só deixando algo entrar que poderia parir uma pérola. Mas não gostava de pérolas. Não gostava de deixar entrar. Não gostava da bailarina.
A ostra não gostava de poesia, mas era sabida de semântica. Não se deixava cair pela malemolência da bailarina.
Pobre bailarina. Sentia-se como um papel de chiclete que, embora alguns julguem ser comestível, só os demasiadamente insensatos se aventuram a provar. Nunca uma senhorita. Nunca uma dama tão belamente ornada com seus brincos e anéis e pulseiras e relógios e bolsas e beleza.
Desenvolvera a estranha noção de que tanta beleza deveria vir acompanhada de doses cavalares de caridade.
Era confortável crer que alguém tão fartamente agraciado faria alguma espécie de compartilhamento. Dividiria com o mundo o que tinha de sobra. Quem sabe um tipo de Amor Drive-thru. Dois beijinhos e um afago no ombro pra cada bobinha apaixonada.
Porque a bailarina queria o que não podia ter.
E a bailarina esperou. Mas nunca chegava sua vez. Entrava na fila diariamente, mas a Linda Ostra do Amor Dosado era muito rígida quanto ao afeto ofertado.
Dizia a ostra que não teria problema em amar. Só não estava amando.
Pobre bailarina. Apaixonou-se por uma ostra. Queria tanto a pérola, mas não havia como chegar até lá.
A ostra tinha uma forma tão linda e delicada de não responder às perguntas da bailarina. Tinha um jeito profundamente gracioso de dizer "não é da sua conta".
Porque a ostra tinha a estranha mania de ser sucinta.
A bailarina acreditava estar condenada a reviver o mundo mudo. Já a ostra tinha fé que não voltaria ali outra vez.
O sintoma da bailarina era o veneno da ostra.
Pobre bailarina. Sentia-se um cancioneiro inédito que ninguém queria ler.
Pobre bailarina. Só tinha Esperança. Deixar-se-ia convencer, eventualmente. A ostra se abriria, pensava ela. A ostra era sabida de assuntos de amor. A ostra só não queria pérolas.
Vez por outra, devido ao silêncio, a bailarina cogitava que talvez a ostra fosse muda. Mas logo abandonava a ideia. Sabia ser apenas algo que Esperança lhe sussurrava pra que não se sentisse tão mal.
A bailarina surda tentava ignorar Esperança. Mantinha-a trancada num cantinho escuro. Só a deixava sair à noite. De vez em quando. De quando em nunca ouvia suas doces palavras.
A bailarina era surda. Não podia ouvir os sinais. Fiava-se piamente a ideia de que a bela ostra não atendia mais que uma boba por dia. Que uma boba por dia era tudo o que podia suportar.
Porque a bailarina tinha problemas com as palavras.
Pobre bailarina. Sabia que acabaria dançando se não descobrisse uma maneira de se declarar para a ostra. De achar uma abertura. Podia sentir a música se acumulando dentro dela. Procurando uma forma de chegar à ostra. Encontrar uma brecha, pequenina que fosse.
A bailarina queria transformar o eu e a ostra num nós. A ostra não queria eu nenhum envolvido em um nós.
Porque a bailarina queria.
Mesmo sendo de espécies diferentes, a bailarina julgava que a ostra a fazia mais si mesma.
A invasão fez a bailarina perceber que não era tão inatingível. A bailarina queria escutar outras canções que não a sua própria. Enquanto que a ostra não podia desperdiçar sua madrepérola com uma invasão qualquer.
Porque a bailarina não conseguia querer menos.
Para a ostra, tudo era insuportável.
O armário de papel da bailarina surda estava se rasgando por tudo o que tentava portar.
Porque não podia ser de outra forma.
Então um dia, não sem aviso, a ostra se foi. A bailarina tinha conhecimento da partida. Mas não conseguia realmente acreditar. Esperava que algo mudasse. Esperava que houvesse salvação. Que suas almas buscariam um a outra, não se deixariam separar. Mas a ostra foi. Sem nem ao menos uma despedida apropriada. A ostra se foi. Sem ao menos um convite. A bailarina iria junto, pra onde quer que a ostra fosse. Mas não houve pedido.
A bailarina ainda vê a ostra em todo canto. Em cada dança.
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A Ostra e a Bailarina
Short StoryHistória metafórica sobre amor. Com estilística da literatura infantil, narra o amor não correspondido de uma bailarina surda por uma ostra que não gostava de pérolas.