Capítulo 24

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        Estávamos naquela van há tanto tempo que minhas pernas ardiam em câimbra, só parei de prestar atenção naquela sensação quando vi a placa que dizia Bem-vindo a Esperança.

Ninguém fez nenhum questionamento quando voltei para casa, em Beldam, o que foi bom por um lado já que não saberia explicar o que acontecera. Além de mim apenas Maria parecia saber, a julgar pela forma como nos escoltou até o carro e deu um aceno fraco em sinal de adeus.

Fiquei tão assustada que nem percebi que deixávamos aquela vida vazia e maldita, meu corpo tremia tanto. Sentei ao lado de Ben e me distraí repetindo para ele que tudo ficaria bem. Não dei atenção quando chegamos em Porto Alegre na manhã seguinte e fomos ao aeroporto. Não me importei com o frio na barriga quando o avião decolou e muito menos quando pousou em Trevo. Nada parecia ter a mesma relevância do que Lídia ter tirado a própria vida.

Otávio foi o primeiro a ser deixado em casa, se despediu com pressa e pude ver o abraço que deu em seus pais, pela janela, desejando ter o mesmo em breve, minha família. Em seguida foi Lucas, Geórgia e então Isabel, que soltou um grito agonizante quando o irmão veio correndo em sua direção. Eu era a próxima.

A felicidade me atingiu como um trem desgovernado. Ainda na van, meus olhos arderam e meu coração bateu com mais força, em alto e bom som, como um tambor. As casas começaram a ficar familiares. Eu estava indo para casa, finalmente.

A mão de Ben apertou a minha, me dando a força que eu precisava. Me apoiei em seu toque, tão perto e real, o símbolo de que tudo aquilo estava mesmo acontecendo. Eu veria minha mãe.

Meu coração parou ao mesmo tempo em que a van estacionou. Não consegui olhar para a janela, mas sabia que, se olhasse, veria uma casa amarela com uma porta de madeira pintada de branco. Sabia que teria um jarro de pimenta bem na entrada e a janela próxima à porta estaria aberta, para ventilar a sala.

   — É sua vez, Flor! — Ben chamou, a voz carregada de emoção.

   — Não consigo — confessei. — Não sinto minhas pernas.

Sua mão largou a minha e foi até meu rosto, o puxando para si. Seus olhos estavam cheios de brilho, de lágrimas, de alegria, de vida. Era impossível não sorrir.

   —  Você é a Florence, sempre consegue. Vá ver sua mãe. — Seu polegar fez uma carícia suave em minha bochecha, amenizando a adrenalina. 

Fiquei de pé, abraçando a tela de Alice contra o peito. A porta da van já estava aberta. Olhei para a casa onde cresci, então encarei Ben:

   — Te vejo depois? 

   — Nos vemos em breve. — Sorriu.

   — Até mais, Florence! — Alice acenou, aos prantos.

Desci da van e, sem esperar a coragem, fui até a entrada de casa. Cada passo dado me trazia uma boa recordação. Foi naquela casa que aprendi a caminhar, foi nela que ganhei grande parte de meus machucados, foi nela que senti o maior amor do mundo, o da minha mãe.

Meus dias de cão haviam chegado ao fim. Não havia mais volta, aquele era o bendito ponto final que tanto ansiava. Podia ouvir sinos soando, uma música celestial que festejava comigo.

Quando enfim cheguei à porta, passei a mão sobre a campainha, mas não consegui tocar. O que iria falar? Oi mãe, aqui é a sua filha trazida dos mortos! O que faria? Fiquei naquele dilema uma eternidade, ou talvez apenas alguns minutos, quando a porta se abriu e uma mulher negra de longos cabelos apareceu, encostada no batente. O rosto mais velho e vivo do que a última vez que a vira, em uma feirinha na cidade da vida que me deram.

Se Essa Vida Fosse Minha Onde histórias criam vida. Descubra agora