Se havia uma coisa que me deixava desconfortável em Paris, eram as cercanias da catedral de Notre Dame. Nunca me senti a vontade passando por aquele gigante de pedra com as gárgulas dependuradas olhando para a imensidão, de bocarras abertas como se em um riso de escárnio.
Reza a lenda que o lugar no qual a catedral foi erguida era um santuário celta muito antes de tudo. Depois, quando os romanos tomaram a região, passou a ser um local onde o deus Júpiter era cultuado. Não sei se essas histórias são verdadeiras e, sinceramente, não me importa.
Mas a catedral está sempre lá e de suas torres, como que vigiando os passantes (ou escolhendo suas vítimas) estão aquelas figuras horríveis. Como eu detesto aquelas malditas bestas de pedra! Meus amigos riem de mim,por conta do medo que tenho. Pierre sempre me diz que as gárgulas tem uma função técnica naquele lugar: servem para escoar a água da chuva e fazer com que ela caia sem danificar a estrutura da construção.
Já pesquisei em livros e sei que isso é um fato. Mas também já li que as gárgulas estão lá na condição de guardiãs do templo. É sério! Elas foram dispostas em torno de toda a catedral para lembrar que o Bem está dentro da igreja e, em tese, seu aspecto medonho serve para garantir que o Mal fique do lado de fora.
Por que não colocaram anjos para fazer esse serviço? Sei lá! Uma imagem do grande Miguel com sua espada flamejante não me daria tantos arrepios quanto àquelas figuras hediondas. E vou ser sincero em dizer que meu temor em relação a elas piorou de uns tempos para cá.
Uma noite dessas, eu estava voltando para casa depois de um passeio pelas margens do Rio Sena. Eu só estava andando, despreocupado, pensando em nada a não ser na beleza daquela noite. Por incrível que pareça o céu estava limpo e até dava para ver as estrelas. O ar frio entrava nos meus pulmões e me fazia sentir incrivelmente bem, coisa rara nos últimos tempos.
Quando dei por mim, eu estava praticamente na catedral. Meus passos me levaram para lá sem que eu percebesse,tão desligado do mundo eu estava. Senti o desconforto característico que sempre me acomete quando passo perto da igreja, mas naquela noite, a sensação foi bem pior.
De repente, um vento mais cortante que o ar gelado que eu respirava me atacou, fustigando minhas faces como um chicote. Encolhi-me dentro da jaqueta, mas nada parecia ser capaz de me proteger daquele açoite violento. Um barulho vindo do alto me fez erguer os olho sem direção a catedral. Nesse momento minhas pernas enfraqueceram e sinceramente eu não sei como não caí estatelado no chão.
Eu vi uma das gárgulas se movendo! Eu juro que vi!
As pedras de que são compostos aqueles corpos horrorosos foram se transformando em uma carne com aparência pegajosa e aos poucos, a gárgula foi abrindo suas asas como se estivesse acordando depois de uma boa noite de sono. Ela olhou na minha direção e sua bocarra se abriu mais ainda revelando uma fileira de dentes afiados. Um fio de saliva escorreu pela cara daquela deformidade sem nome e eu ouvi aquele monstro estalar a língua, parecendo dizer que eu seria um petisco apetitoso.
Não esperei para ver o que poderia acontecer. Virei-me e saí correndo como um desesperado, e só parei quando cheguei ao meu apartamento. Tranquei a porta quando entrei,passei reto pela sala e me fechei no quarto.Tentei me acalmar dizendo a mim mesmo que aquilo tudo não passava de uma alucinação.Talvez efeito da taça de vinho que havia tomado no jantar.
O som da risadinha nervosa que saiu da minha boca me preocupou ainda mais, invés de me acalmar. Pensei que dormir um pouco me faria bem. Então, meti-me embaixo das cobertas antes que a sanidade me escapasse da mente como a água escorre pelo meio dos dedos. Em um instante estava nos braços de Morfeu.
Foi nessa noite que os pesadelos começaram. Eles são sempre iguais. Estou caminhando pelas margens do Rio Sena, nas proximidades da Ile de La Cité. Nunca quero irem direção da catedral, mas meus pés se movem para lá por conta própria. Quando dou por mim estou aos pés daquela bizarra construção e nesse momento, as gárgulas alçam voo e me alcançam com suas garras.
Duas gárgulas me seguram e brincam de cabo de guerra com meu corpo. Elas me puxam de um lado para outro enquanto cravam os seus dentes na minha carne, deliciando-se com a iguaria que me tornei para elas. Ouço as risadas malignas das outras bestas que voam em círculos contra um céu vermelho sangue. Nunca sei se o céu está vermelho porque, no meu sonho, o sol está se pondo, ou se ele fica vermelho por causa das feridas que o ataque das gárgulas provocou.
Sempre acordo nesse momento, antes que elas me despedacem completamente. Mas observei que, a cada noite que passa, parece que eu demoro mais para acordar. Também sinto que meu corpo está dolorido. Quase como se de fato, alguém tivesse passado a noite inteira brincando de cabo de guerra com ele.Não tenho marcas aparentes, nem sinal deferimento algum, mas sinto dores horríveis.Como se estivesse ferido por dentro.
Eu iria ao médico hoje, justamente por isso. Mas cancelei a consulta, porque quando saí do prédio em direção à clínica juro que ouvi um rufar de asas atrás de mim. Eu também ouvi uma risadinha de escárnio, que me arrepiou até os ossos. Mas o pior foi mesmo o som do que pareceu uma língua estalando. Como se a gárgula que eu vi se mover na catedral estivesse pronta para me atacar.
Voltei imediatamente para casa. Achava que estava seguro no meu apartamento, ou pelo menos esperava estar. Acontece que, quando entrei, a primeira coisa que fiz foi me dirigir até a janela da sala. Eu amo a vista que se descortina através dela. Desde que vim morar aqui, me encantou olhar as luzes brilhantes da cidade à noite, colorindo de luz a escuridão.
Mas quando descerrei a cortina, eu tive a pior visão que poderia ter: invés vislumbrar os telhados, as ruas, o café logo na esquina; vi uma gárgula pendurada no parapeito da janela. Ela olhou nos meus olhos e abriu sua bocarra. Sua língua se projetou para fora com aquele som de estalido que eu odeio. O medo afrouxou os músculos da minha bexiga e urinei nas minhas calças, enquanto fugia em direção ao quarto.
Não que isso importe agora. Estou ouvindo o caixilho da janela que fica próxima da minha cama ser forçado. Sei muito bem o que é. Achoque elas vieram atrás da sua refeição...
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Outros Escritos
Short StoryPublicado pela Editora Arrebol Coletivo, este livro contém crônicas e contos diversos, os quais retratam sentimentos como abandono, dor, medo, tristeza e saudades. Aqui trazemos para você uma degustação da obra! Esperamos que gostem!