Assim foi que, terminadas as tarefas do dia, a benfeitora dona do mercadinho voltou para ali nos arrebaldes da cidade acompanhada pela beata. Foram até a casa da velha e ainda dentro do carro a benfeitora foi surpreendida, encontrando pela primeira vez o portão aberto. Os caixotes de madeira e os sacos para as compras, os únicos moradores daquela casa que lhe eram familiares, também haviam sido recolhidos e não estavam mais à vista. Estranho, descobriu-se pensando em voz alta, e ouviu a beata responder com um automático "hãn?" de alguém que não compreende exatamente algo que ouviu.

Apontando para dentro do abraço dos muros da casa, o portão aberto as convidou numa voz muda para que o transpusessem. Quando o fizeram, novamente se surpreenderam, pois, presa como uma bocarra monstruosa e sem dentes ao frontão da casa, a porta de entrada as esperava escancarada. Até ali, não haviam cães, gatos ou qualquer animal doméstico ou silvestre que pudessem ver ou ouvir, não havia jardim, nem ao menos grama, e o pátio que separava as visitantes da porta de entrada era pura terra batida, bem socada, dura como cimento, e bem varrida pelo que sugeria as recentes marcas de uma vassoura de mato; a casa esperava, escura, silenciosa e quase onírica para o atual estado de espírito em que se encontrava a benfeitora, vendo a casa se encolher entre os muros abusadamente altos e que pareciam separar aquele recôndito retangular do resto do mundo. A sensação que a benfeitora sentia caminhando ali pode ser comparada à sensação que um colonizador sentiu ao caminhar sobre solo novo e ainda por desbravar, mas ela não tinha como saber disso – o sistema invisível que opera nas engrenagens internas da nação brasileira se encarregara muito bem disso –, ou não se importava o suficiente para tanto.

— Licença Dona Amália, tamo entrando! — a mulher de fé se adiantou e assumiu a liderança, como é característico das "pessoas de deus". Avançaram até a bocarra infernal no frontão da casa e também a transpuseram, sentindo o peso gradativo do manto de silêncio que envolveu o recinto logo depois que a beata se calou.

Estranho.

Atrás da bocarra transposta não era o inferno propriamente dito que as esperava, mas mesmo assim era com um inferno que elas haviam se deparado. Não com aquela imagem clássica do inferno, aquela que em suma junta tudo o que a humanidade resolveu algum dia odiar e transcreve em monstruosas e sangrentas criaturas dispostas num cenário vulcânico fantasioso; o inferno com o qual se depararam era diferente, mais mundano. Mesmo assim um inferno.

Como o ocaso se esparramava pelo espaço cedido à ele pela porta aberta, tinham uma faixa de visão do interior da casa. Nada viam lá dentro, nenhum sinal de mobília ou moradores; mesmo quando deixaram o primeiro cômodo atrás de si, entrando numa ampla sala vazia, ainda estavam sozinhas com os ecos de seus passos, mas ignoraram as portas no corredor à direita quando ouviram movimentações no quintal nos fundos da casa. Dona Amália.

Vista de costas era apenas uma coisinha miúda enfurnada num vestidinho de brim, quase engolida e assimilada pelo pano de fundo ao seu redor: um inferno de cacarecos e móveis, muitas sacolas cheias de roupas e ainda mais sacolas empanturradas de trapos, havia caixotes de madeira, cestos e bacias de plástico transbordando de quinquilharias largados sobre o chão ou amontoados sobre peças de mobília congelada no tempo, de aparência velha, ultrapassada e anacrônica; também cadeiras, potes, louçaria, estantes, bancos de madeira em todos os tamanhos, um rádio velho, uma televisão antiga de tela pequena e ainda engastada em madeira, e até uma geladeira vermelha de esmalte roído compunham aquele inferno, dispostos em anarquia absoluta.

Chafurdando por entre aquele inferno particular em seu quintal, a velha dava movimento, vida e energia àquele caos todo. Viam uma coisa nova e diferente sempre que moviam os olhos para acompanhar seu trajeto. O florido do vestido e um rápido esgar que revelou apenas a ponta de um pequeno nariz e a extremidade de um queixo seco e retraído foram as únicas coisas que a velha deu às visitantes quando lhes falou, alheia e absorta no que quer que estivesse fazendo, para que se sentassem. "Lugar num vai sê difícil di achá. Senta... senta por aí".

Tanto a beata quanto a benfeitora tinham as palavras presas na garganta e peso sobre os ombros, o que era incomum para mulheres expansivas como aquelas, antes ruidosas e proativas, agora quietas, diminuídas, curvadas.

— Mas cadê essa maldita dessa arma? — ouviram a velha balbuciar por entre uma braçada e outra naquele mar de tranqueiras.

...Arma?

— Esses discunjurados tão o tempo todo esfregano essa maldita arma na minha cara, fazeno ela aparecê por tudo que é lado, posso nem abrí uma gaveta ou procurá alguma coisa em paz! — ignorando a companhia das mulheres, virou-se e foi até um armário no chão, deitado de lado à esquerda de um antigo pedal de máquina de costura que agora servia de banco à beata, com a benfeitora à frente sentada visivelmente incomodada num sofá carcomido.

...Desconjurados?

— ...quando priciso achá a disgrama da arma, num consigo nem por decreto!

...Precisa? Pra quê?

A velha resmungou para si mesma enquanto esvaziava, inutilmente, o conteúdo de uma caixa de metal esverdeado, com ferrugem e apetrechos de pesca encobrindo todas as partes ainda saudáveis do metal. Se já tinha pertencido à algum pescador, isso deveria ter sido há muito tempo atrás.

Algo se passou, tinham certeza, mesmo que fosse uma certeza instintiva. Algo havia operado na velha, seu semblante agora era... mais frio. Ela se emudeceu, e a natureza ao redor pareceu avivar-se em detrimento à sua mudez. Ouviam agora o que não ouviam antes: silvos indistintos de pássaros, tênue som de grilos, de água e de vento roçando em folhas de árvore. Julgaram ouvir passos.

Cruzando o infernal campo minado, a velha veio e ocupou o segundo assento vazio do sofá. A benfeitora sentiu cheiro de suor, de morte e de remédio quando recebeu no nariz a baforada de ar que a velha causou quando se sentou. Sentiu também o cheiro úmido de mato, mas este vinha do ar que pairava ao redor delas. Ouviu uma coruja, um som que já lhe passava despercebido e indiscriminado, pois morava na beira de um rio e convivia cotidianamente com isso. Com isso e muito mais, já que Porto Felício não passava de um lugarejo aberto à facãozada há não mais de meio século, sem pretensão alguma além de servir singelamente como um ancoradouro no rio Paraná, constituído, em sua maioria, por casas de veraneio e de férias e uma insubstancial população ribeirinha de pescadores, peixeiros e donos de bar. 

*

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.

*

Sangue de ÍndioOnde histórias criam vida. Descubra agora