Confesso

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Tá, Vou me abrir...
Mas será do meu jeito!
É desumano falar tudo de uma vez.
Até mesmo comigo.
Então deixa eu ir devagar, ok?

Eu nem sei como vou contar isso.
É aviltante pra mim. Não é pela história em si, é pela forma como eu participo e o preço que tem me cobrado desde então!

Durante anos sempre achei que a virtude seria recompensada. Sabe, boas ações, bons costumes, boas práticas, disciplina, empenho, essas coisas que, comumente, convencionaram chamar meritocracia.
Pessoalmente, não gosto do termo. Parece que só merecem as benesses da vida quem praticamente abdica dela. Eu nunca entendi essa lógica.
Ah, e a inteligência...Sempre necessária!! Essa que me faltou nos momentos mais precisos. Cérebro seletivo, sei lá; escolhe qual o momento funcionar.

Mas fui, mesmo aos solavancos algumas vezes, sendo razoavelmente bem sucedido em minhas propostas. Nunca foi a abundância o alvo de minhas ações. Não é que não tenha apreço pelo conforto e pela qualidade de vida, só você sabe o quanto nos fez falta um teto melhor em muitos momentos. Mas ver o resultado deles, suas conquistas, esse é o sucesso que vale o preço.

Mas o preço a que me referi no início, foi alto, alto demais...
E estou pagando por ele há muito tempo, tempo demais...
Minhas certezas se foram há muito tempo, tempo demais...
Estou exausto, exausto demais...

Mas antes, deixa eu matar essa taça. Pode ser a última, e um Cartuxa 2011 merece toda minha atenção! Ele afasta os meus demônios internos, mais do que essa confissão sequer poderia pretender. Melhor seria um Barca Velha, mas essa oportunidade não tive!

Tá aí, confissão... Cheguei a fazer uma uns 10 anos atrás, pouco tempo depois de tudo já ter acontecido. Falei tudo ao Padre, devo certamente ter usado de eufemismo em demasia. Natural quando falamos de nós mesmos. Plural de humildade nos êxitos, e diminutivos nos fracassos...Nem valeu a penitência!

Se eu deixar, essa garrafa me tornará mais prolixo do que sou habitualmente. É difícil ser objetivo quando, no fundo mesmo, adoraria esquecer tudo e seguir em frente. Quantas vezes fui incentivado a isso...
As pessoas têm pressa em opinar, vivemos a era da opinião alheia. Mesmo não sendo demandados todos anseiam por dizer o que pensam e nos aconselham segundo um senso comum, óbvio e inútil, na imensa maioria das vezes.
Se soubessem o que fiz, bem possível teriam pressa em me crucificar!

Deixei tudo quase implícito dois anos atrás, quando publiquei um de meus textos. Na ocasião, era mais por expurgo...
Sabe aquela catarse ingênua, infantil, de se livrar de uma unha no canto do dedo?
Quase efêmero, não deu nem pra saída.
Talvez devesse me entregar às autoridades, tenho um amigo na Civil. Acredito que me tratariam com alguma dignidade, mesmo imerecida.

Mas aí seriam mínimas as chances de lhe dizer, assim, aos poucos. Vou precisar desse tempo. É muito cruel...
E revelar a mais sombria e obscura face de si mesmo é doloroso.
Não é apenas um cravo na ponta do nariz, é um processo.
Não busco redenção, ao contrário, anseio o repúdio e, talvez, o massacre público. Será libertador.
Quisera poder fazê-lo olhos nos olhos, sem disfarces, sem máscaras. Sempre as usamos, nossas máscaras diárias, a vida adulta seria virtualmente impossível sem elas.
Falsidade talvez seja uma virtude.

Só peço poder te ver uma última vez, antes do fim e depois de tudo. Será uma benção! Teus olhos, mesmo marejados, ainda me trazem aquela confiança juvenil de que um futuro nos espera. Seria demais sonhar com um último beijo? Ainda que temperado com o sal triste de tuas lágrimas, este seria um bálsamo pra mim, que já não tenho esperanças.
Estou muito brega? O vinho já bateu. A linha entre o romântico e o brejeiro é fina como a lágrima persistente em minha taça e tortuosa como meu caminhar após algumas delas.

Estou tomando fôlego. A coragem vêm em doses de whisky pra uns. Pra mim, sempre foi o fôlego. Aquela lufada de ar, inflando os pulmões de oxigênio fresco e limpo, coisa rara em tempos de meio ambiente maltratado.
Sempre me valeu aquela imagem do atleta de salto ornamental. Impossível arriscar-se daquela altura, sem uma dose dupla de oxigênio geladinho.

Quando decidi lhe contar tudo, foi numa cena parecida. A dor lacerando meu peito, a culpa fervendo minhas veias, a lembrança do ato derretendo meu cérebro.
O horizonte nesse momento é ainda mais bonito. O pôr do sol visto do alto das pedras nesse dia não merecia os aplausos costumeiros da praia de Ipanema. Antes isso, ele impedia qualquer ação. Faltou-me o fôlego, aquele da coragem. Por ação Divina? Não posso afirmar. Há quem ache explicação divina ou demoníaca pra tudo. Espíritos obsessores. Procuramos razões sobrenaturais para nossa incapacidade de compreensão. Tolice, por mais que a razão me ensejasse o salto, foi o sol que me salvou. Sobrevivi a esse dia...

É por isso que resolvi te escrever. Por aqui. Não é usual, eu sei. Nunca gostei da ideia de devassidão da própria vida em ambiente tão hostil. Mas acho, agora, que é o foro ideal. Se as feridas se abrirão, que sejam retorcidas e expostas em praça pública. Não restarão pudores após isso. Prefiro assim!

Ao me expor, te preservo. É lógica reversa. Teus erros estarão resguardados, na mesma proporção que escancaro a brutalidade de meus atos.
Serei objeto de escárnio por uns, e de abjeção por outros.
Em tempos de mentiras sendo veiculadas diariamente por autoridades governamentais sem nenhuma consequência, será impressionante (assim mesmo, com dois esses) ver a verdade violenta de meu crime ser condenado!

Não tome por atitude orgulhosa. Um crime nunca é. Não para mim, não confunda legítima defesa com psicopatia. NÃO MATEI POR GOSTO FOI POR NECESSIDADE!
Assassínio. Covarde. Mas legítimo..

Foi lento, foi doloroso, foi sufocante.
Mas, também foi preciso, quase cirúrgico e sem rastros!
Ninguém notou...
Ninguém deu falta...
Ninguém viu nos jornais...
Só eu sei como matei;
Só eu sei o quanto doeu,
o quanto sangrou,
o quanto foi estúpido e violento,
o quanto foi surpreendentemente fácil,
sem resistência,
sem ninguém por perto,
sem consequências, eu pensei.
Tolo, a consequência foi quase imediata.

Sim, sou um assassino!
Reconheço meu ato repugnante.
Mas foi necessário! Não sobreviveria se não o tivesse feito.
Acho mesmo que todos cometem crimes parecidos, diariamente.
Diariamente, ao ignorar a fome do seu semelhante;
Diariamente, ao aceitar o uso político e financeiro da fé alheia;
Diariamente, ao perceber o mar morto da multidão, num misto de gente, verduras flácidas, frutas apodrecidas e ratos... muitos ratos!
Alguns prontos a lhe roubar muito mais que a dignidade.

A vida na periferia das grandes cidades é um mergulho nu no rio Ganges entre celebrações funerárias, dejetos humanos e a limpeza ritualística de uma vaca.

Estou terminando
Você ainda não percebeu quem morreu?
Isso é o que mais me corrói a alma.
Meu crime maior não foi o assassinato.
Foi achar que sobreviveria sem aquela parte de mim sufocada naquele dia.
E saber que você não notou a diferença me destrói por inteiro.

Chegou a hora!
Vou pagar pelo meu crime...
Mas será do meu jeito.
Bastará um boa dose de fôlego e evitar o sol!

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⏰ Última atualização: Sep 25, 2020 ⏰

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