Capítulo 5
"A História de Tanya"☆I
Já não era possível puxar na memória qualquer coisa sobre Pernambuco, tudo parecia apenas um borrão, lembrava as vezes de estrada de terra e mato alto, de chupar cana e de brincar com um cachorro cor de mel de nome Zé Banzé, mas fora isso mais nada.
A memória nítida começava em uma rodoviaria onde o casal de irmãos, a menina de nove anos o menino de seis, embarcaram apenas com uma mochila com uma troca de roupa para cada e uns trocados para o lanche.
A menina se chamava Bethânia, mas para os chegados era apenas Tânia, e o menino era chamado André.
Os dois eram escravos.
Sim meus caros, não lhes conto nada sobre a época do Império, não falo sobre navios negreiros nem nada do do passado,não, o que conto é de um tempo bem perto do agora, até os dias atuais existe escravidão no nosso pais, nós é que somos perversos e fechamos os olhos para isto.
Era ano de 1985 e André da mãe so tinha a lembrança de ser muito severa e ter vendido ele e irmã para uma senhora da capital de São Paulo, Tânia ia para trabalhar de doméstica e André no asseio do jardim.
A viagem de ônibus foi longa, não horas mas sim dias, quando chegaram a são Paulo havia na rodoviária o chofer da patroa lhes esperando, o homem era até simpático pois lhes pediu desculpas quando mostrou a eles que os bancos de trás do suntuoso Opala haviam sido forrados de jornal para que sentassem, a patroa tinha nojo de sentar no mesmo lugar que gente pobre.
A mulher, palida com um palmito e gorda como uma leitoa os recebeu muito secamente, iriam morar na casa dela, um casarão fascinante com feitio de casa de novela no bairro Jardim França. Os dois foram malocados em um quartinho no porão atrás do aquecedor a gás e iram dormir no mesmo colchão velho com outra menina, Alice tinha só dez anos de idade e já trabalhava ali havia cinco. Era assim, acordavam as quatro da manhã e iam dormir depois da meia noite, todo dia era de trabalho. Lavar a roupa a mão, por no varal, cozinhar, varrer, encerar os pisos de marmore, passar espanador nas estátuas e bibelôs... A casa de três andares era demasiado grande para as duas meninas darem conta da limpeza, e o Jardim que mais parecia um campo de futebol era pesado demais para André cuidar sozinho, els tinha de todo dia podar, capinar, regar, limpar, recolher bosta de cachorro, depois que acabava tinha de entrar e ir ajudar na casa. Sempre que o serviço ficava incompleto a dona patroa descia até o porão e só parava de brandir o cinto nos três quando o braço cansava.
Era uma vida muito ruim, muito mesmo.
Passaram um ano lá até que o chofer, um homem bigodudo e magro feito vara pau desceu ao porão de madrugada, acordou os três e disse assim:
— Amanhã vai chegar aqui o filho da patroa, ele vem do estrangeiro depois de ter se formado doutor nas Américas. É um conselho que dou para vocês três, concelho de amigo, piquem a mula dessa casa agora, principalmente as meninas. O homem é abusador de crianças. Antes de ir viajar, isso seis anos atrás, ele vivia aqui com a mãe e tinham na casa uma negrinha pernambucana de empregada, era Tatiana o nome da pobrezinha. Tinha doze anos e pegou barriga, o desgraçado a forçava quase todo dia, sabe como são esses brancos, são uns porcos. Dona Leonor viu que a menina tava prenha e mandou eu levar em um doutor cirurgião dentista lá no Tremembé, um que além de arrancar dente também fazia a barriga sumir, se é que me entendem. Levei Tatiana de manhã mas não precisei ir buscar de tarde. A menina morreu na operação. Então se tem um pouco de juízo na cabeça de vocês dêem o fora. Eu vou fingir que esqueci o portão da garagem aberto essa noite, vocês vão pra cozinha, enchem um saco com o máximo de comida que puderem levar, um outro saco com coberta e agasalho e vão-se embora antes do sol raiar.As três crianças eram sofridas sim, mas eram pernambucanas e isso significa ser gente valente, não se fizeram de rogadas, imediatamente subiram para a cozinha e encheram uma bolsa de pano com pão, uma garrafa d'água, linguiça defumada e umas barras de chocolate que a Madame mantinha no armário de cima e que os proibia até de olhar.
Sairam pela rua, Alice era mais velha e mais manjada então disse que ir rumo o centro da cidade não dava pé, a Polícia sempre passava por lá de hora em hora naquele fusca ridículo da rádio patrulha, então foram andando rumo a avenida Zefredo fagundes pois Alice sabia que o fim dela era lá pras bandas da Fernão dias.
Os três andaram a pé a noite toda sem parar pra descanso, o sol raiava quando atravessaram a rodovia e chegaram em Guarulhos.
Acharam um terreno baldio cheio daqueles tubos enormes de concreto que a companhia de saneamento usa para fazer rede de esgoto, se enfiaram dentro de um, comeram o chocolate e depois passaram o dia dormindo. De noite continuaram a andar, sempre indo mais para o norte afim de achar algum lugar para repousar em segurança, toda vez que a Polícia passava eles se escondiam, sabiam bem que criança de rua ia parar na *FEBEM* e ninguém queria isso para si.
Quando o dia amanheceu estavam mortos de cansaço e de fome pois a comida ja tinha ido toda mas tinham de continuar. O ditado que diz que "nao tem coisa mais feia que a fome" é uma verdade triste. No dia seguinte fuçaram a lixeira de uma padaria e conseguiram lá um pão velho grande o suficiente para os três roerem. A viajem prosseguia e então na manhã do outro dia lá perto do Jardim Cocaia entraram em uma rua que mais parecia uma viela, lá avistaram uma fila de crianças muito grande, a fila acabava na porta de uma casa pintada toda de azul claro com um portão de ferro. Olharam ressabiados e foram logo andando sem querer chamar a atenção, mas então uma senhora, que diga-se de passagem tinha a cara mais redonda que as crianças ja tinham visto, os chamou.
— Ei vocês três, o fim da fila lá ó — e apontou para o lado contrário.
Tânia era a mais desinibida e sem demoras perguntou:
— Senhora, essa fila é de quê?
— Oxi menina, não sabe que dia é hoje?
— Não. — Tânia respondeu, e de fato não sabia.
— Hoje é sábado, dia doze de outubro, é dia de Cosme e Damião, a fila é pra ganhar os sacos de doces que meu terreiro vai dar. Ande, bora pra fila!
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Búfalo Sandara
FantasyUma chacina em um terreiro de Candomblé desperta o desejo de vingança de um dos sobreviventes que ruma a uma aventura sobrenatural atravessando os nove Orun's, o mundo dos Orixás. Será que a linha tênue entre amor e ódio pode ser ignorada? Bruxaria...