Sobre morangas e um amor impossível

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"Tortéi de Moranga?"

Era a terceira vez que a recusava. Vinha assim tão esplendorosa, esquivando elegantemente das quinas pontiagudas das mesas, mesclando uma singela sensualidade com a pressa em atender os clientes. 

A doce voz tão contrastada com o malévolo prato que insistentemente trazia, anunciava aquele olhar que penetrava o escudo da minha retina. 

E como me doía a desfeita.

Sua missão de ofertar a maldita iguaria nos jogava a extremos incompatíveis, a um amargo destino que eu relutava em aceitar. 

Os assuntos na mesa advindos das incansáveis histórias e piadas sem graça pela celebração dos 57 anos de meu tio, já eram batidos. 

Acenava positivamente ostentando um falso sorriso às investidas de minha inclusão na conversa, mas meus sentidos estavam lá, caminhando de mesa em mesa com a moça do Tortéi de moranga, que oferecia a morte às pobres almas.

Por que não gosto de moranga? 

Não possuo muitas frescuras quanto à comida, mas esta é intragável!

O cheiro me remete aos piores dias de minha existência e trazem um sentimento de descrença na vida. 

Para os que não sabem, a caixa de pandora foi aberta e os males do mundo eram na verdade, morangas apodrecidas de tanto que lá ficaram. 

Nas ditaduras militares, se mesmo com a esfacelação dos membros com torniquetes não houvesse sucesso, a prática da moranga sempre arrancava algum segredo. Inclusive a célebre frase bíblica "quem nunca pecou, que atire a primeira pedra", se referia a morangas (e alguns desacreditados em Cristo realmente atiraram, em um ato frio e covarde).

E pela quarta vez, enquanto devaneava, a moça veio com o prato dadiscórdia em uma mão, e a arma de servir na outra: 

"Tortéi de Moranga?" 

O mundo paralisou, registrando a fulgente conexão dos nossos olhos, testemunhando a proximidade física de duas almas incompatíveis. 

Não pude conter a tristeza, enquanto ela notava nitidamente que ali viria uma nova recusa silenciosa. 

Virou o corpo para se deslocar à próxima mesa, e o meu coração disparou. 

Sem que houvesse uma fagulha de pensamento, segurei seu finíssimo antebraço, e lhe pedi com o mais nobre sentimento: 

"Pode pedir pra trazer uma porção de polenta frita? ", ao que me responde: "Claro, vou pedir pra minha colega, só um minuto! ".

E lá se foi a moça, pedir à sua afortunada colega que me trouxesse o solicitado, como um anjo que na sua condenação, suplicasse o bem a seu protegido. 

E vieram. Finas, crocantes e gordurosas: Um espetáculo. 

Há quem diga que Colombo comemorava suas conquistas territoriais com polenta frita e champanhe. 

Outros dizem que após pousar na Lua, Neil Armstrong celebrou tal feito com seus colegas saboreando um vasto prato de polenta. Vai saber.

Perto da despedida, fitei a donzela de longe, que me correspondeu. 

Embora houvesse a atração, se entendeu mentalmente que seria um romance proibido, pois as polentas fritas e as morangas não se misturam, não neste mundo cruel. 

Acenei com a cabeça em tom de adeus, e juro ter visto a moça deixar uma lágrima cair no recipiente do tortéi.

Não comi mais no restaurante, mas estes dias passei a frente. 

Vi pela fachada que a moça ascendeu na sua função - agora entregando massa alho e óleo. 

Não é nenhuma polenta frita, mas, quem sabe não esteja na hora de voltar ao recinto?

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