— Coisas do pai, tudo aqui é coisa do pai. As coisa de pescaria daquela caixinha era dele também. Tava tudo infurnado aqui nessa casa depois que o pai e a mãe morreru, eu achei quando vim morá pra cá, depois que a vó morreu também e eu fiquei sozinha morano na casa dela. Num guentei ficá lá não, o povo da famía dela aparecia dimais, e eu gosto é de ficá sozinha, nunca consegui ficá muito tempo perto dos otro. Larguei a casa da vó lá pra eis e vim morá aqui, na casa do finado seu Zeca Moura que tinha ficado pra mim. — peças de roupa velhíssima, acabada e se desfazendo eram remexidas pelas mãos ossudas de Dona Amália enquanto falava. Traças corriam desgovernadas e algumas caíram no chão quando a velha fez o bolo de tecidos voar em arco por cima da cabeça da beata. Ela soltou um gritinho enojado e pareceu prestes a falar algo. Entretanto, foi interpelada pelo choque quando a velha retirou da maleta uma arma.
— O revórvi. O revórvi do finado seu Zeca Moura. O pai atirô no próprio ouvido depois de tê isganado a mãe. Saiu da casa, andô até ali atrás de onde que ta o muro, num tinha o muro na época, fui eu que ergui depois; andô té ali na bêra d'água e se atirô. Eu sonho com ele, sonho com ele ali ca arma na mão. Com essa arma na mão. — manejando a arma debilmente, a depositou sobre a bagunça na mesinha. — No sonho, ele me chama, e quando eu chego perto, ele me atira também. Diz qui eu também vô tê que pagá, com a voz dele, mais daí dipois fala que qué chupá meu sangue, mais num é a voz do meu pai que eu escuto saí da boca dele no sonho. É uma voz diferente, istranha; parece que é varias vozes junta, falano ao memu tempo.
— Num me acunticia antes, essas visage, esses sonhos, mais dipois que a vó morreu eis viéru com força. Primero era só quando ficava de noite que vinha. Eu via gente, iscutava coisa, umas coisa ruim... E ia ficano pior as coisa que eu iscutava, e as coisa que eu via mais pior ainda. Comecei a sonhá com gente istranha, gente que eu não conhecia, gente que me aparecia ni sonho e me mostrava coisa, mostrava gente morta, casinha de pau pegano fogo, gente seno passada na faca, muito tiro, muito tiro e muito sangue. Eis vinha e me falava, ou vinha e me fazia vê essas coisa; mais eu também sonhava que tava nelas, que via tudo aconteceno, que tava junto no meio. Dipois piorô tanto que eu comecei a vê eis toda hora, todo dia, o dia interin. Só que quando piorô assim eu já num via mais os home que eu via antes, no sonho, eu passei a vê índio: índio erezin, índio véio, índia muié, o tempo interin. Im pé, sentado, de carne e osso, pé e pescoço, do memu jeitin que cês duas aqui comigo na minha frente. — as três se entreolharam profundamente, olhos uns nos outros pela primeira vez. Dona Amália parecia derrotada, franca e as beiras de um ataque de choro ou de riso, mas não parecia louca. Parecia decididíssima e estranhamente solene. Num átimo, lançou a mão espalmada para esmagar uma gorda barata escura que lhe subia pelo braço. Cerrou o inseto no punho que o esmagou e continuou apertando, olhando algo escorrer-lhe por entre os dedos. Em instantes, tinha a mão nefastamente negra, pingando uma baba grossa que já começava formar uma poça no chão logo abaixo de si, depois de escorrer pelo vestido e o braço carcomidos da velha e manchar o sofá onde ela estava. Levou a mão negra ao peito, como um ato de quem discursa.
— Eu podia ficá aqui a noite intera falano p'cês o que eu passei, as coisa que eu via, as coisa que os morto já me contaro no sonho. Mas num tem sintido ficá gastano o tempo das sinhoras, e o meu tempo também já chegô no seu fim. — as visitantes perceberam-se com os pés engolidos pela poça preta quando a velha apontou com o dedo igualmente preto. Sentiam a viscosidade no tato dos pés, e suas narinas foram violentadas pelo cheiro que subia do chão. Antes que pudessem estourar cerca afora como um rebanho de bovinos assustados, a velha levantou-se e foi até a beata, pondo-a de pé com um puxão da mão suja.
— Nada ni mim é ispecial, nem ni vocêis, nem ni ninguém. O mundo é uma saroba de gente morta-viva isperano o mundo acabá. Andano pra lá e pra cá morta im pé. Ninguém é inocente, fía, tudo nóis tem que pagá. Essa terra já sofreu por dimais, e num vai existí felicidade de novo enquanto ainda tivé um bicho home vivo. — e então posicionou-se frente à frente com a beata, segurando suas mãos rechonchudas nas suas. — Tudo o que eu queria era comungá pelo menos uma vez. Eu nunca fui numa igreja, mas ouvia a santa missa no rádio e tenho fé ni Deus e Jesus Cristo. Me fazeno esse último favor cês já vão tá me dano mais do que eu mereço. Só quero que a sinhora me benza, que é pr'eu num morrê pagã. Queria pelo menos podê entrá no céu de Deus nosso Senhô... purquê no céu do meu povo eu já num posso entrá.
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Sangue de Índio
Short StoryNão se pode querer o retorno de uma seta atirada, nem se pode voltar atrás depois de as palavras serem ditas. A terra tem fome. Fome de vingança.