É meio dia, o sol desempenha a função de carrasco açoitando o asfalto e destruindo qualquer fator de proteção solar.
Dalia caminha com dificuldade pelo cenário de destroços, desvia de objetos aleatórios que não combinam com o espaço em que estão inseridos como em uma pintura de Dalí.
Numa tentativa de amenizar os raios nocivos da estrela mãe, camadas de tecido morfado improvisam um tipo de proteção para a cabeça, como um turbante afro.
Teatros, bares, restaurantes, motéis...
Vazios. Saqueados pela população antes da evacuação.Enquanto caminha a memória rebobina as ultimas lembranças da civilização e as imagens surgem numa resolução de fita VHS: cadáveres amontoados nas portas de hospitais, fome em escala mundial. Desespero.
A ordem impressa na bandeira nacional totalmente perturbada por uma ameaça invisível em forma de peste. Uma releitura cubista do diabo de reproduzir a propria versão da humanidade onde as pessoas batem continencia para figuras grotescas e gritam (enquanto o ar tóxico não dilacera seus pulmões) o novo slogan do país: "Hail pandemônio: Caos acima de tudo, pânico na vida de todos."
O vento assobia a marcha fúnebre enquanto bate nas janelas das casas vazias e traz os pensamentos de Dalia de volta para o presente, onde o chorume escorre dos morros feitos de lixo como se fosse a bile escapando pelos buracos de um corpo putrefato.
A cidade de São Luís está morta.
O silencio doloroso a acompanha pela cidade que impõe sobre o caos de destroços o peso de sua presença tumular.
Dália não sente a dor da perda. Sua alma secou pra todo choro assim como as nascentes poluídas dos rios secaram para a sede dos sobreviventes.
Ela segue a passos lentos, retorce o pescoço e seus olhos alcançam um outdoor que diz: "Jesus está voltando", em letras vermelhas.
Olha para o céu, nada, nem nuvens nem pássaros, apenas o azul infinito contrastando com a profecia do outdoor e pontuando o vazio de sua existência.
Seus ombros expostos padecem sob a tortura do sol com queimaduras de segundo e terceiro grau, retorcendo a pele e exibindo lascas de gordura amarela onde grudam fiapos de tecido que desprendem de sua roupa.
Seus olhos negros como duas sementes de guaraná varrem o perímetro e pousam sobre uma das muitas construções depredadas, a antiga linha de supermercados São Marcos.
Dalia rasteja sobre o asfalto fervente rumo à promessa de alívio. Desliza o corpo franzino pelo espaço vago entre duas tábuas usadas para isolar as portas do supermercado e caminha em direção a penumbra que nocauteia a visão.
No interior do supermercado azulejos sujos revestem as paredes aquecidas pelo mormaço e aprisionam na atmosfera abafada um cheiro metálico que se desprende das prateleiras enferrujadas.
Ela caminha pelo chão fuliginoso guiada apenas pelos raios solares que atravessam os buracos no teto, observando ratos e baratas labinrinteando por entre as carinhas felizes das embalagens de batatas pringles espalhadas pelos corredores de gôndolas vazias.
Os olhos lambem o cenário empoeirado, as pupilas dilatadas com o esforço para enxergar no lusco-fusco até que as retinas captam movimento.
A cena é processada pela parte occiptal do cérebro e a imagem é convertida em uma série de informações que percorrem como ondas elétricas por suas terminações nervosas.
Os músculos de seu rosto enrijecem, a boca seca e toda a sua atenção é direcionada para a pele alva como marfim de um corpo estendido no chão.
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Eucaristia
Short StoryObserve como a ceia é vasta, e veja como seu apetite é infinito. (Morbitvs vividvs) bon appétit! 🍴