O cotidiano

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Sentada, esperando, mantinha um olhar perdido naquelas imagens refletidas no vidro do ônibus. Estranho aquilo, se olhasse pra fora da janela, as árvores corriam apressadas pra lá, no vidro iam pra cá, uma incoerência. A vida é um grande desacordo, pensou.

As folhas roçando apressadamente o vidro ao acaso.

As pessoas cochilando ao seu lado, naquela longa viagem.

O vento uivava mansamente ao passar pelos frisos da janela, por vezes uma brisa suave lhe tocava a face, sorria com esse pequeno prazer.

As vidas vagavam como as imagens das árvores refletidas, às vezes num sentido, às vezes ao contrário. 

Num grande acaso proposital chega o destino, de mansinho, escrevendo suas linhas. Em cada singularidade uma vida.

O que levada cada um daqueles indivíduos a compartilhar essas horas, chegar no mesmo destino?

Pela estrada seguiam os pneus rolando ritmados, os amortecedores que de vez em quando davam sua participação sonora, fazendo música com o ronco dos motores, o ranger do metal, o silvo do vento. Uma orquestra no alcance de suas mãos, ao vivo, era lindo!

Mas ninguém parecia se importar, todos estavam entretidos demais para notar as delicadezas da vida, se perdiam no frio constante e impessoal do ar condicionado. 

Lá fora o sol, convidativo e inebriante. Deliciosamente acalentando o mais frio dos corações.

Aos poucos suas pálpebras desabavam. Tudo preto. Então colorido novamente. Que delicia é adentrar no mundo dos sonhos, com suas flores, cores, aves, árvores, astronaves. Pensamentos e sensações rodopiavam nela, num embalo sincronizado sonho-realidade.  Assim seguiam, de braços dados, sorriso largo, num embalo infantil, numa alegria contagiante. 

Seu mundo agora volvia como que dentro de um espelho, cada passo a frente, parecia ir para trás. Tornando a dança ainda mais divertida.

Como era encantadora dormindo. 

Não havia como olhar e não se encantar, sua fala doce, seu riso fácil – ah, aquele sorriso – conversava sobre tudo, porque tudo lhe era absolutamente interessante. Tudo lhe era absolutamente apaixonante!

Me contou seus sonhos e medos, como se nada fosse, me deu espaço para contar os meus e pouco a pouco percebi que expunha mais do que jamais fizera. 

Não havia mal em compartilhar.

Enquanto descansava ao meu lado, seu braço roçou levemente o meu.

Arrepios. 

No seu descaço, a suavidade e alegria transpareciam, sua cabeça pendida levemente para o lado, aquele cabelo de cachos largos caia em seu rosto, inadvertidamente. 

Cheirava à flores.

Olho com mais atenção pela janela, o reflexo, as pessoas. 

Quase enxergo o que ela vê com tanta naturalidade: a gente é curiosa, cheia de manias. Estão tão presas em suas peculiaridades e similaridades, agora percebo, quão interessante são. 

De tantas viagens, tantos ônibus, tantos reflexos ... Jamais havia reparado na vida que segue ao contrário. Entra n'alma, tão rica, precisa passar duas vezes para ser absorvida. Vez pra lá, vez pra cá. 

Obviamente já havia assistido a cena vez antes. No entando, nunca passara de uma imagem estática, sem significado, mal fazendo moldura. Tal qual quadros de quadro apreciado em galeria por espectadores cheios de conteúdo vazios de significados. Panorama blasé era o que lhe perpassava, nada mais.

Mas não com ela. Aqui tudo tem propria vida, uma alma e uma vontade. Ah, assim é tão mais fácil enxergar. 

Afina o véu que cobre a visão da distância, objetividade pratica de quando se cresce. Lentamente faz-se quase possível finalmente ver o que não via antes dela. 

Ela conversa com as formas, se apaixona, é apaixonante.

Um chacoalhar abrupto.

"Caramba, dormi muito? Cai em você?" Abre os olhos num repente, assustada me pergunta.

É encantador seu jeito, suas preocupações bobas. 

"Não, dormiu por uma hora mais ou menos, só. E não se preocupe, nenhum ronco! Nem tampouco me incomodou." Começo a pensar que jamais poderia.

Ela sorri sinceramente. 

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⏰ Last updated: Sep 02, 2020 ⏰

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Amores efêmeros de metrôWhere stories live. Discover now