Quente. Essa foi a primeira sensação que minha mente impelida pelo desejo de fuga registrou, mesmo com os olhos fechados conseguia sentir a luz lunar sobre mim, o astro pairando solene e silenciosamente como um espectador atento ao desastre iminente e inevitável que se seguiria a partir dali. O vento fraco soprava por entre as árvores da floresta, trazendo o aroma de grama molhada e agitando suavemente as folhagens em uma tentativa de amenizar o clima intenso. Os sons de passos ritmados e sincronizados pisoteando a grama rala me trouxeram de volta.
Tochas acesas condecoravam as dianteiras do terreno, bandeiras tremulavam: dragão contra corvo. No mundo animal esta seria uma batalha óbvia, o dragão acabaria com o pássaro com um simples truque de mandíbula, mas aqui, nesse lugar esquecido por todos os deuses de nossa civilização, ''óbvio'' era apenas uma palavra prepotente.
Não desejava acordar daquela ilusão, gostaria de continuar ali, alheia ao caos ao meu redor, ansiava fugir e como não era possível contava com minha imaginação para fazer o serviço. Fingia estar no campo, longe de toda a agitação, convencia-me de que o peso em meu corpo não era a brilhante armadura vermelha e sim o da capa que usava em dias mais frios, a pressão na mão direita era um livro e não uma espada, a angústia em meu peito provinha da preocupação de chegar em casa a tempo do jantar e não do destino que me aguardava, como uma fera que observa paciente sua presa esperando o momento para infligir dor e destruição.
A aproximação do exército oposto me obrigou a abrir os olhos pela primeira vez desde o instante em que pisara na clareira. Encarei o mar de guerreiros em armaduras carmim que obstruíam minha visão, mal havia mobilidade, como se a cena estivesse repentinamente muito lenta, se não fosse pelo calor de seus corpos e os movimentos de sobe e desce de seus tórax poderia jurar que estavam todos mortos. Não era possível enxergar nada a frente e meus ouvidos mal detectavam algum som coerente, portanto contentei-me em esperar, sabia que não tardaria até que fosse minha vez de assumir a dianteira, e pretendia prolongar o máximo que me fosse permitido aquela sensação de paz e esperança digna dos que ainda não sabem que seu destino é o inferno.
Ergui a cabeça e fixei o olhar nas nuvens, fingindo que elas representavam formas de objetos que remetiam a coisas e pessoas das quais eu amava; o candelabro acima da mesa de jantar, a lareira da sala de estar, as flores dos campos perto de casa, os livros organizados no parapeito da janela em meu quarto, o grande espelho da mamãe e os anéis de papai, qualquer coisa que remetesse minimamente a conforto e aconchego. Não me atrevi a evocá-lo. Nos últimos meses tornara-me mestre em fingir, fosse em relação aos meus sentimentos ou a qualquer outra coisa que demandasse o uso de emoções desde que isso significasse ter uma válvula de escape para um mundo muito além daquele que me cercava, um mundo em que poderia ser feliz, pois neste, estava irrevogavelmente fadada ao sofrimento.
Desejava que o tempo parasse, congelado naquele segundo até que pudesse aceitar meu fardo, infelizmente qualquer tolo saberia, mesmo se fosse concedida a eternidade jamais me renderia por vontade própria, todos os meus movimentos eram impelidos pelo impulso e pelo dever, um lembrete constante do que precisava ser feito. Melhor que estivesse nas minhas mãos a qualquer outro naquele purgatório. Eu teria a mais gentil das misericórdias, eles não.
Porém, o tempo não espera, assim como a batalha.
Tinha consciência, mesmo distante, de que os passos haviam ficado mais altos durante meu devaneio e tão repentinamente quanto começaram se encerraram. O silêncio era sepulcral, a tumba de folhas verdes aguardava a chegada de seus próximos ocupantes. Imóvel em meu posto ouvi ao longe a aproximação dos dois comandantes do exército inimigo, enquanto os nossos iam a seu encontro no meio do terreno, uma cordialidade dispensável considerando o cenário. O som das vozes trazidas pelo vento arrancou de mim a última das esperanças, mesmo que não conseguisse distinguir o que diziam, sabia que era chegada a hora de encarar minha sina.
A última palavra de nosso líder foi dada e quase como um comando o mar cor de sangue que antes me engolia abriu-se de forma conjunta enquanto eu caminhava, agora tudo que podia ver era um longo corredor humano, os rostos dos aliados mal eram registrados por meu cérebro embora reconhecesse todos eles, todavia as emoções ali contidas ficaram impressas em mim como cicatrizes. Pena, dor, ódio, medo, tristeza e todos os demais sentimentos vulneráveis que outrora tentamos esconder estavam expostos sem qualquer tipo de amarra social que denotasse sua contenção.
Minhas pernas obedeciam mecanicamente a meu cérebro, apesar da temperatura elevada notei que tremia levemente, as mãos suadas agarradas a espada como as mãos de um devoto agarram-se a um crucifixo. Olhava para a frente mantendo a cabeça erguida, porém desfocava propositalmente a visão para não ter realmente de enxergar, perderia a pouca coragem disponível caso visse aquilo que sabia me esperar.
Mais cedo do que almejava alcancei a dianteira próxima ao centro do planalto, meus oponentes agora podiam ver-me e tinham seus olhos fixos em mim, as roupas tão escuras quanto uma noite sem estrelas e tão reluzentes quanto olhos de um corvo que anseia por saciar sua fome em um cadáver exposto e esquecido na beira de uma estrada. Nosso exército parecia incrivelmente ridículo e diminuto perante a magnanimidade dos corvos que haviam tomado todo o lado sul da clareira, fazendo com que mesmo na presença do Sol o lugar fosse obstruído por densas sombras. Nós éramos um exército, eles uma legião.
Não ousei olhá-lo.
Forcei-me a focar o olhar e o fixei nos comandantes de nossa tropa, meus irmãos. Os rostos compartilhavam da mesma expressão dura, entretanto transpareciam aquilo que suas almas não podiam esconder. Os cabelos castanho escuros esvoaçando suavemente, seus olhos: jade e âmbar, se moviam conforme meu próprio movimento, não fosse por isso pareceriam estátuas de mármore em um memorial fúnebre.
O homem de cabelos cor de palha foi o primeiro dos generais adversários a me ver. Uma vez notada pude reparar que seus músculos se retesaram sob a armadura, em seu rosto as mais diversas expressões, os olhos incrédulos, a boca parcialmente aberta em choque, a cabeça repetida e lentamente se movia de um lado a o outro como se estivesse em negação.
O movimento despertou a atenção de seu companheiro, não olhava diretamente em sua direção, mas pude involuntariamente perceber quando este firmou a cabeça no sentido de seu irmão observando intensamente a expressão de horror incontido. Seguindo aquele olhar ele finalmente me viu avançando.
Não foi preciso realmente vê-lo para saber que os gélidos olhos me fitavam, não queria ver sua expressão, entretanto, sabia que, tão rápido caem as folhas no outono como levou para o gelo derreter em um mar azul.
Avancei mais alguns metros até o centro do campo e uma vez ali tive de me entregar a fatalidade que ansiava dia após dia para pôr suas malditas garras em mim. Desviei o olhar até encontrá-lo, contive o grito em minha garganta com tamanha força que mesmo Atlas enquanto segurava o peso do mundo em suas costas não haveria de ter feito tamanho esforço, meu coração agora era uma máquina desgovernada, meus esforços não surtiam efeito, a fantasia tinha acabado, não havia mais para onde fugir, meu refúgio mental desabara e minha mente agia sem controle entregue a tortura. Todos os meses de treinamento pareciam perdidos. Estava prestes a cometer a maior e mais terrível das blasfêmias. Esforcei-me mantendo a aparência de calma enquanto olhava nos olhos do homem que eu amava, pronta para matá-lo.
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B.E.A.S.T.
Paranormal''A última palavra de nosso líder foi dada e quase como um comando o mar cor de sangue que antes me engolia abriu-se de forma conjunta enquanto eu caminhava, agora tudo que podia ver era um longo corredor humano, os rostos dos aliados mal eram regis...