— Karen, você não existe.
— Sério, amiga, ficou tão bom assim?
— Amiga, não, presta atenção. Literalmente, você não existe, era isso o que eu queria te contar antes da reunião. Você. Não. Existe.
— O que?
— Calma, respira, é difícil mesmo quando a gente descobre, mas você vai se acostumar.
— Me acostumar? Maria, que história é essa? Você está...
— Claro que estou bem, pode tirar essa mão da minha testa. Eu sei que não existo há muitos anos, e olha só, nunca estive melhor na minha não-existência.
— Não-existência, aham, tá. Meu jesus cristinho, Maria ficou doida, gente, olha só. Bem aqui, de pé, na minha frente achando que eu sou uma dessas... Senhor amado, tô pensando em voz alta?
— É uma condição da não-existência.
— Condição? Ai, Maria, para. Isso é zoeira, né? Tá me zoando? Nossa, mana, eu quase caí nessa, que horror. Que bom que isso não é verdade, porque se fosse meus pensamentos seriam sempre em voz alta e todo mundo iria escutar. Que bom que ninguém escuta.
— Exato. Ninguém. Será que agora você entende?
— Maria, sério, para com isso. Como assim não existimos, como isso é possível?
— Ué... como seria impossível?
— Sendo! Eu tenho meu corpo, minhas pernas, braços, cabelo, eu respiro, vivo, existo! Eu até ... Ha, já sei! Eu...
— Pensa? Já tentaram essa antes, querida, mas não funcionou. Você pode pensar e não existir, como eu.
— Mas como?
— Assim, ó... Tá olhando pra mim?
— Tô.
— Então pronto. Assim.
— Mas outras pessoas me veem!
— Será que veem, Ka? Será mesmo? Reunião passada você andou até a frente da sala, falou, falou e o chefe nem te deu bola. No final acharam que o Roberto era quem tinha dado a ideia boa.
— Ai, amiga, mas isso é machismo, você sabe.
— Sei? Olha, depois não diz que não te avisei.
— Mas, amiga, como que... Aí, olha, já são quase três horas, vamos. Sua apresentação é antes da minha, não é? Relaxa, eles vão adorar.
— Não vão não.
— Mas amiga, está ótima!
— Karen, acorda! Eles nem vão ouvir, e por motivos óbvios: eu não existo. E não se preocupe, eu aceito minha não-existência com gosto.
— Gosto?
— Claro, ué! Dá pra atravessar paredes, entrar e sair sem ser percebida, e tudo isso é ótimo! Dizem até que a gente não morre.
— Caramba, sério?
— Aham! Tipo, a gente não fica velha nem nada. Só jovem e jovem e depois nem sei o que acontece na verdade. A gente some ou coisa parecida.
— Certeza? Sumir não parece legal, mas, pensando bem, acho que foi isso o que aconteceu com a minha mãe.
— Sua mãe sumiu?
— Virou faxineira de shopping, o que é quase a mesma coisa, então sim.
— Uau, com certeza sim, e viu só! Era até de família e você que não tinha notado.
— Meu Deus! Como eu não soube que eu não existia? Então todo esse tempo as mulheres lutando por igualdade, quando na verdade nenhuma de nós...
— Uou, calma aê, Karenzinha, não entenda errado. Algumas mulheres existem, mas nós duas, e sua mãe que nasceu na aldeia, não.
— O que?
— Olha só pra Alice do RH. Ela existe. É linda, de carne e osso, tão branquinha...
— Não é justo. A Alice existe? Aquela Alice?
— Aquela mesma!
— Mas por quê?
— Porque é o suficiente.
— Suficiente?
— Xi.... Lá vem você com esse olhar de "você não está explicando direito". Olha, Ka, eu até sei a resposta, mas você não vai gostar.
— O que é?
— Tá preparada?
— Sim.
— Não, não está. Você nem sabia que não existia há três minutos! Mas tudo bem, vou contar mesmo assim.
— Tá bem.
— Pronta mesmo?
— CONTA!
— É a nossa pele.
— HAN?
— E cabelo.
— Brilhantes?
— Escuros.
— Poxa, mas e...
— Tinta não ajuda, eu tentei.
— E a ...
— Cirurgia? Michael Jackson teve sucesso, mas ele tinha vitiligo, era negro e homem. Já estava acima na escala de existência, então...
— Tem alguma...
— Não.
— Eu nem terminei!
— Solução? Não tem. Quer dizer, sei lá, talvez um dia se descubra, mas é uma coisa que se tenta há uns anos e até agora eu só vi Alice existindo, e... ei! Calma, amiga, não fica assim não, ô-ô. Levanta esse astral aí, que energia negativa, cruzes! Você tem uma apresentação para não ser ouvida, já arrumou tudo?
— Já...
— Então ótimo, vamos. Te conto mais sobre nossos poderes no caminho.
