Eles estavam sentados na mesa da cozinha, um de frente para o outro. Rebeca esperava um clima um pouco mais dramático, afinal ela estava terminando um relacionamento que durara 2 anos e que vencera muitos obstáculos para chegar até ali. Porém, Caleb não parecia tão triste assim com a notícia.
- Caleb, desculpa mas eu não consigo mais. Eu estou exausta. Não estou conseguindo ser pra você a pessoa que você merece.
- Você tem certeza disso? - perguntara o rapaz
Rebeca pensou um pouco por alguns segundos e respondeu após um suspiro:
- Tenho.
Rebeca não estava passando por uma fase boa. Há alguns meses seu pai morrera subitamente após um AVC, sua mãe desenvolvera depressão profunda e chorava desesperadamente todos os dias e além disso Rebeca estava lutando contra uma doença auto imune debilitante e sem cura que a fazia sentir muitas dores pelo corpo todo.
O relacionamento com Caleb não tinha grandes problemas. O rapaz era tranquilo e amoroso, a única coisa que a incomodava era que ele era calado e não parecia ter muita atitude. Ela achava que lhe faltava mais opinião própria, pelo menos um toque de irreverência. A mãe de Rebeca era contra o namoro. O motivo: a estatura. Caleb tinha por volta de 1,68 e Rebeca tinha 1,70. Rebeca não se incomodava com isso afinal Caleb era bonito e principalmente gentil, mas não importava o quanto Rebeca tentasse fazer sua mãe enxergar as qualidades do namorado a mãe estava cega pelo preconceito.
- Mãe, o Caleb é tão amoroso, paciente e gentil. Também é trabalhador, esforçado e honesto. Me trata com muito carinho. Não é isso que importa?
- Ele é muito pequeno pra você, Rebeca. Você não tem vergonha de andar com aquele anão?
- Claro que não! Além do mais a diferença de altura é quase imperceptível, pelo amor de Deus que bobagem, mãe.
- Você não tem amor próprio. Está desesperada, acha que não vai conseguir coisa melhor. Você é uma incapaz!
E assim eram as discussões todos os dias, um rio de ofensas derramados sobre a menina que já estava sofrendo para superar as dores que a doença lhe impusera. "Você é incapaz", " você é uma vergonha", "você está com ele porque não tem capacidade de ter alguém melhor", "eu nunca vou aceitar", " não vou no casamento" e tantas outros insultos e ameaças.
Quando Rebeca anunciara a família que estava namorando Caleb ela não esperava pela reação da mãe, afinal ela sempre falara muito bem dele. O via com bons olhos, até Rebeca se interessar por ele. O pai nunca foi contra. Apoiou e recebeu o rapaz em casa quando ele foi pedir a filha em namoro. A mãe ficou dentro do quarto trancada nesse dia. Mas um dia quando ele estava sozinho no carro com a filha ele disse:
- Você gosta mesmo desse rapaz, filha?
- Claro pai.
- Você tem certeza que vai comprar essa guerra com a sua mãe? Ela vai fazer da sua vida um inferno.
- Eu amo o Caleb, pai. Ela vai ter que se acostumar com isso. Não posso deixar minha mãe dominar todos os aspectos da minha vida pra sempre.
- Bom, você que sabe. Eu não tenho nada contra o rapaz. O que me importa é que você seja feliz.
Realmente a mãe de Rebeca fez um inferno na vida da filha. Ficava semanas, e até meses sem dirigir a palavra a filha após alguma discussão sobre a estatura do namorado. Em uma dessas discussões a mãe chegara a agredir a filha com tapas e chutes. Quando Rebeca contava para os amigos ninguém acreditava, ou se acreditava achava que era ciúmes da mãe, mas Rebeca a conhecia muito bem e sabia que não se tratava de ciúmes mas sim de controle. Certa vez, quando Rebeca tinha 14 anos ela queria muito ter seu primeiro emprego, como jovem aprendiz e por um acaso ouvira atrás da porta uma conversa entre os pais:
- Não podemos deixar a Rebeca começar a trabalhar com essa idade. - dissera a mãe
- Porque não? Eu acho legal esse interesse dela em trabalhar. Eu comecei a trabalhar com 9 anos. - respondeu o pai
- A nossa época era outra, João. Hoje o mundo é outro. Se a Rebeca começar a trabalhar vai criar asas, ganhar o mundo e vai ser difícil dominar ela. Ela ainda é jovem demais pra isso. Não sabe o que é melhor para ela e é para isso que estamos aqui. Não podemos perder o controle.
Rebeca ficara muito triste, pois suas colegas e primas da mesma idade estavam empolgada com os novos empregos de 4 horas por dia após a aula. E ainda ganhavam um curso profissionalizante 2 vezes por semana na área em que estavam atuando como aprendizes. Mas Rebeca não podia, ou melhor, sua mãe não podia perder o controle sobre ela.
A mãe de Rebeca já havia traçado o destino da filha. Ela ia cursar medicina na Universidade de São Paulo assim que acabasse o ensino médio, por isso nada mais poderia ocupar o tempo da filha, ela precisava estar focada em realizar o sonho da mãe. Quando era criança Rebeca amava a ideia de ser médica e falava para todo mundo empolgada que quando ela fosse grande ia ser doutora. Rebeca era uma criança feliz e falante, muito inteligente mas nada fora da média, mas para sua mãe Rebeca era uma criança prodígio e com certeza teria um futuro brilhante. Quando entrara na adolescência Rebeca começou a entender que não seria tão fácil assim realizar esse sonho, pois era muito difícil entrar em uma faculdade pública principalmente no curso de medicina, e embora ela fosse bem na escola ela era uma aluna de desempenho mediano, e ela tinha consciência disso, e principalmente começou a se questionar se aquele sonho era dela mesmo ou só de sua mãe. E então as brigas começaram. Mãe e filha que antes pareciam tão ligadas já não se entendiam tão bem. Rebeca não herdara a vaidade da mãe, não se preocupava tanto com as roupas que usava ou com o cabelo. Solange, a mãe, era super vaidosa e ficava indignada com o jeito simples da filha:
- Você é muito relaxada. Olha esse cabelo que horrível, parece uma bucha. Assim nenhum homem vai te querer.
- Mas eu nem posso namorar ainda, mãe.
- É, não pode. Mas se continuar assim quando puder ninguém vai querer. Olha essa postura, garota. Arruma a a coluna!
Na escola Rebeca não tinha muitos amigos. Quando era criança sim, mas com o passar dos anos e com a chegada da puberdade a menina não se tornara muito atraente. Pelos grossos nas pernas que a mãe não permitia que ela depilasse, segundo Solange para que a menina não "perdesse a inocência". O corpo esguio de uma adolescente que esticara rápido de mais, pernas finas, seios quase imperceptíveis, e glúteos pequenos. O cabelo encaracolado e volumoso não era moda nos anos 2000 e toda essa mistura junto com o sorriso metálico de aparelho e óculos para descanso do estigmatismo faziam com que os colegas da escola caçoassem da menina incessantemente. Sua mãe para tentar "ajudar" escovava e pranchava seu cabelo para ficar liso, mas o efeito não durava muito tempo, por essa razão Rebeca após muita insistência convencera sua mãe a deixar que ela fizesse uma progressiva. Mas as ofensas não terminaram aí. O cabelo que antes parecia uma bucha, segundo Solange, agora parecia uma palha esticada. Na escola os colegas continuaram o bullying que durara até o ensino médio e fizera com que seus poucos amigos de afastassem.
Com 16 anos pouco havia restado daquela criança feliz e tagarela. Rebeca se tornara uma mocinha observadora e calada. A maior parte do tempo ela tentava passar despercebido para evitar chamar atenção dos jovens que haviam feito do início de sua adolescência um inferno na terra. Nessa época ela tinha apenas dois amigos, que também eram excluídos, com quem andava na escola. Só na escola, pois sua mãe não permitia que ela tivesse amizade com meninos.
Foi nessa época que finalmente acabara o tratamento de 6 anos do aparelho ortodôntico, então a menina se sentia um pouco menos estranha. A essa altura ela já aprendera como manter o cabelo de um jeito que a agradasse e que não parecesse uma "palha". Alguns poucos meninos começavam a demonstrar interesse por ela, em especial entre os amigos da igreja que frequentava. Quando não estava na escola Rebeca parecia outra pessoa. Tinha um pouco mais de confiança, mas ainda assim era muito tímida e quando estava entre pessoas desconhecidas ela preferia ficar calada e não chamar a atenção.
Ao contrário do que sua mãe queria Rebeca tinha mais amigos meninos, mas mantinha essas amizades em segredo por isso acabara muitas vezes sozinha em casa ao invés de sair aos domingos à tarde para ir ao cinema ou ao parque como a maioria dos seus colegas fazia.
Aos 17 anos anos Rebeca estava enfrentando seu maior desafio: o vestibular. Ela tinha escolhido medicina veterinária. Solange não questionou muito a decisão da filha, pois ser médica veterinária formada pela Usp ainda sim parecia algo do que se orgulhar.
- Rebeca vai ser veterinária. - espalhava Solange para todos os amigos e familiares com muito orgulho da filha e ainda afirmava que seria formada pela universidade pública mais famosa de São Paulo e
Rebeca sentia-se pressionada. Ela queria ser veterinária mesmo? Ela amava os animais, mas na verdade aquela altura ela já não sabia mais o que realmente gostaria de fazer. Uma vez uma professora dissera em classe:
- Eu acho errado crianças como vocês terem que decidir o que farão pelo resto da vida. Adolescentes de 17 anos deveriam estar escolhendo qual calça jeans comprar, não uma profissão.
Alguns de seus colegas pareciam ter muita certeza do que queriam. Alguns, assim como ela, sonhavam em ser médicos desde pequenos, outros professores ou advogados, mas Rebeca não pensara tanto sobre isso, afinal ela tinha escolha?
- Eu tô com muito medo do resultado. - desabafou Rebeca com seu melhor amigo pelo MSN
- Você é a pessoa mais inteligente que eu conheço. Com certeza vai passar. - respondeu o amigo
- Aí Fe... eu não sou tão inteligente assim. Mas valeu. Pelo menos alguém acredita no meu potencial.
- Para com isso. Não seja negativa. A primeira pessoa a acreditar no seu potencial tem que ser você mesma. - disse Felipe
- Eu sei, mas... eu tenho que ser realista também. Poxa, tantas faculdades particulares mais fáceis de entrar com enem ou algo do tipo, precisava ser a Usp?
- Se você não quer estudar lá, escolhe outra faculdade ué...
- Hahaha. Seria bom se fosse fácil assim...
- Mas é.
- Fe, quem não quer entrar na Usp? Eu só sei que eu não tô preparada.
Enquanto digitava rapidamente no teclado do computador a gatinha de Rebeca se esfregava em suas panturrilhas, ronronando num ritmo lento e reconfortante. Rebeca olhou para a gatinha e sorriu.
- Sabe, eu não tenho certeza se quero trabalhar pelo resto da vida vendo animais doentes e morrendo. Já pensou quando eu tiver que sacrificar um animalzinho? Meu Deus! Só de pensar me dá arrepios.
- haha, desculpa mas como vai ser veterinária então?
Rebeca se perguntava isso todos os dias.O dia tão esperado chegou e finalmente sairia o resultado dos vestibulares. Solange estava super animada e ansiosa e Rebeca apavorada. A menina sentou-se em frente ao computador que ficava em seu quarto e apertou o botão de ligar. Enquanto esperava o Windows iniciar balançava as pernas incessantemente. Suas mãos estavam frias e começara a sentir um desconforto na barriga. Depois de alguns minutos conseguira acessar a página oficial do vestibular da Usp e então visualizou o resultado: 58 pontos, reprovada.
Ao ver o resultado a menina sentiu o mundo rodando, seu estômago embrulhado e então saiu correndo para vomitar no banheiro. Rebeca precisava dar a notícia para a mãe que esperava ansiosa enquanto preparava o almoço na cozinha.
- E então, passou? - perguntou Solange
- Infelizmente não. - respondeu Rebeca olhando para o chão sem coragem de encarar a mãe
Solange ficou parada olhando para a filha por alguns instantes, depois respirou fundo, se virou para a pia e começou a lavar a louça e disse:
- É... você não vai deixar de ser minha filha por isso.
Rebeca voltou para o quarto e chorou o resto do dia em silêncio.
Durante um bom tempo a mãe não conseguira disfarçar a decepção e ficava dias e até semanas sem dirigir a palavra a filha, e quando o fazia descarregava várias ofensas e humilhações para demonstrar sua insatisfação:
- Eu e seu pai demos a você o que não podíamos para que você tivesse um futuro melhor que o nosso. Eu me anulei para cuidar de você. Desde que você nasceu tudo que eu tenho feito é cuidar de você e a sua única obrigação era passar na faculdade e nem isso você conseguiu fazer.
- Mãe, eu tentei mas é muito difícil. Eu consegui passar em outra faculdade pública. Não está bom?
- Não! Aquele buraco... você passou porque é um buraco que ninguém quer estudar. Que decepção, meu Deus. Também ao invés de estudar você ficava no computador conversando com suas amiguinhas. Você nunca levou os estudos a sério. - a mãe falava berrando e chorando dentro do carro enquanto levava Rebeca a algum lugar - esse era meu sonho pra você e nem essa alegria você foi capaz de me dar. Sua filha ingrata!
E essa mesma discussão foi se repetindo milhares de vezes, por um longo período. No início a menina tentava argumentar com a mãe mas depois desistira e se perguntava se ela era realmente uma filha tão ruim assim.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Narciso, te amo. - Essa Não É Uma História Sobre Romances
ChickLitAcompanhe a história de Rebeca desde a infância até o momento em que ela conhece Narciso, um rapaz bonito e charmoso mas que esconde vários segredos sobre seu passado sombrio. Entenda quais passos fizeram uma jovem aparentemente feliz e com uma vida...