― Não sei como ainda tens paciência ― disse o Tempo.
Do alto do monte, vestia seu manto branco, segurando um cajado de oliveira, com a longa barba fustigada pelo vento gelado, escondendo nas cortinas alvas do cabelo, o rosto austero.
― Gosto deles ― respondeu a Morte.
Um senhor idoso de ar simpático, vestia calça e camisa de algodão azul-escuro, assim como as nuvens sombrias carregadas de chuva lá embaixo, balançava um chapéu de palha, marcando um ritmo feito batidas de coração sobre a perna descansada.
― Todavia, eles não gostam de você ― retrucou o Tempo implicante.
― Nem de você ― cortou a Morte.
― De mim?! eles me amam, meu caro amigo, não podem viver um minuto sem achar que estou presente com eles, imploram que me alongue e lhes seja favorável. Já você, você meu amigo, eles temem, rezam para nunca receberem sua visita, mesmo sendo eu talvez o culpado, por cada suspiro perdido.
― Ainda assim, gosto deles ― falou teimosamente a Morte ― São perseverantes mesmo sob sua ditadura, são esperançosos mesmo com toda dificuldade, possuem um ar de beleza nessa efemeridade.
O Tempo deixou de fitar as nuvens que se precipitavam como tempestades, e mirou o senhor compassivo que se sentava ao seu lado, quis ver em seu velho amigo o que quer que fosse de ironia, entretanto, a Morte não estava sendo irônica, de fato gostava dos seres de quem falavam.
― Podem se passar eras e talvez nunca vá te entender meu amigo.
A Morte encarou o Tempo, refletiu que nem sempre ele fora amargo e inflexível como demonstrava ser agora, um dia o detentor das horas foi o mais apaixonado de todos, contudo em algum momento o Tempo deixou de ver beleza no mundo aos seus pés, e isso era triste.
― Você está cansado meu amigo, apenas isso ― a Morte se levantou, esticou os braços preguiçosamente, e caminhou montanha abaixo.
― Eles são uma doença, Morte ― O Tempo falou batendo o cajado no chão, o homem idoso com quem conversava parou de caminhar, levava os braços as costas, uma mão segurando a outra, não se voltou completamente, apenas olhou para onde o amigo o desafiava.
― Eu sei o que você vai propor, já discutimos sobre isso e a resposta é não. ― Falou seriamente.
― Isso é negligência ― esbravejou o Tempo sem paciência ― Você tanto quanto ela determinam o destino deles, poderia se quisesse corrigir tudo, mas esconde seu papel, esconde sua responsabilidade com esse tênue fio de bondade, isso é hipocrisia. Eles semearam destruição durante toda minha existência, vi mais crueldade do que suportaria ver. ― O bastão tocou uma segunda vez o solo e o ar ao seu redor vibrou, a Morte então soltou as mãos, se voltou para o homem que lhe encarava, e só então o Tempo arrefeceu seu semblante ― Você e eu, nós dois podemos pôr um fim a tudo isso. A Vida renasce Morte, nos dando uma segunda chance, juntos podemos fazê-la florescer, sem os horrores já criados, uma perfeição como ela mesma um dia desejou. Não dê as costas para mim. Me escute, apenas me escute. Ao menos me deixe mantê-la longe dessa abominável criação. Uma segunda chance foi o que ganhamos, e estamos cometendo o mesmo erro de antes. Um comando seu e tudo abaixo dormirá eternamente. Eu te peço, por todas as horas que dediquei a este mundo.
― Não somos deuses ― lhe respondeu a Morte, lembrando do seu primeiro título fornecido pela Vida. Propósito, era assim que ela lhe chamava.
― Não somos seus serviçais ― rugiu o Tempo.
― Quando foi que perdeu sua compaixão, velho amigo? ― perguntou o outro.
― Quando passaram a cometer abusos contra essa sombra que vive a te espiar ― o Tempo havia se dado conta do movimento atrás do arbusto perto de onde discutiam. E era para ela que apontava.
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O Tempo, a Morte e a Vida
General FictionO Tempo cansado da humanidade, desafia a Morte, a fim de resguardar a Vida sobre seus domínios, os dois resolvem então mostrar seus pontos de vista sobre a criação, e a Morte sempre por caminhos tortuosos resolve mostrar para Vida histórias que diz...