Conto completo

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Parecia que aquela tempestade não teria fim! Começou como uma chuva leve e foi engrossando rapidamente. Em minutos o céu cinzento escureceu mais e o som da água no telhado ficou ensurdecedor, apenas superado pelos trovões. Meu irmão olhava pela janela, onde as grossas gotas tamborilavam e escorriam feito lágrimas pelo vidro. A rua estava toda escura, pois como sempre a eletricidade acabou logo no início da chuva.

-Tem alguém lá fora. – ele disse.

Fui até a janela e olhei. De fato, junto ao portão, havia uma silhueta. A tempestade piorava e a pessoa ali tentava em vão se proteger sob o pequeno telhado que havia sobre o nosso portão, mas obviamente não tinha sucesso. Um raio iluminou toda a rua, seguido pelo estrondo do trovão correspondente, então pudemos perceber que se tratava de uma menina, coitada! Devia ter no máximo uns 12 anos de idade... A pobrezinha tremia e, com medo dos relâmpagos, se encolheu mais junto ao portão, que como não estava trancado, se abriu. Ela então correu até a varanda de casa, com a cabeça abaixada e braços cruzados, buscando se abrigar melhor. Os cabelos escorriam grudados no rosto da garota e seu vestido claro colava-se ao corpo magro e mirrado. Ela não nos viu na janela, mas depois de vencer aos saltos os poucos degraus de acesso à varanda, olhou assustada em nossa direção.

-Acho que devemos chamar ela prá dentro, Felipe. – falei.

-Melhor não, Fabinho. O pai não vai gostar. – Meu irmão Felipe sempre foi mais cauteloso, mas eu não era assim. Por isso eu levava muito mais broncas do pai que ele. Num impulso, me afastei da janela e abri a porta da sala, assustando a pequena invasora que se encolheu perto do banco de madeira que ficava na varanda.

-Não tenha medo, garota! Quer entrar e se secar? Te empresto uma toalha.

Sem responder, a menina se aproximou da porta. Seus cabelos longos e molhados cobriam boa parte de seu rosto, mas pude perceber que era bonita.

Felipe veio por trás de mim e me deu um cascudo, como avisando que o pai não ia gostar daquilo... Dei como resposta uma cotovelada em sua costela e ele resmungou, mas não me impediu de receber a inusitada visitante.

A casa estava toda escura, pois a luz não voltara ainda e não tínhamos velas. Timidamente, a garota passou para dentro e encostei a porta. Suas roupas gotejavam sobre o piso de madeira da sala e logo se formou uma generosa poça sob ela, que tremia tentando ajeitar os cabelos negros.
Felipe, vendo que não tinha mais jeito, apontou para umas toalhas que estavam nos encostos das cadeiras.

-Use uma para secar a cabeça e a outra para o corpo. Desculpe, mas não temos roupas de menina para te emprestar aqui. Só tem homem em casa...

Ela emitiu um “obrigado” tímido e pegou as toalhas que Felipe lhe indicou, jogando uma sobre os ombros e esfregando a cabeça com a outra. O som da chuva começou a abrandar, os relâmpagos e trovões ficaram mais esparsos, mais ainda chovia torrencialmente. A luz voltou de repente, embora a rua continuasse escura, sem luz nos postes. Felipe voltou a olhar pela janela para ver se o pai chegava, eu fiquei fazendo companhia para a menina na sala, que finalmente deu um sorriso.

-Meu nome é Helena e o seu? – disse, me estendendo a mão, que olhei cordialmente mas não peguei.

-O meu é Fábio, mas pode me chamar de Fabinho. Pegue aquele cobertor para se aquecer um pouco. – eu disse, indicando o sofá, onde o pai havia deixado um cobertor xadrez jogado. Helena mais uma vez agradeceu e se enroscou nele como um bichinho desajeitado, o que me fez rir e ela também, mesmo sem saber porque eu ria.

-Mora por aqui? Nunca te vi.

-Não... – seu rosto ficou triste – Não moro em lugar nenhum, vivo na rua.

-Ah... – parece que isso explicava o fato dela estar lá fora no meio daquela chuva.
Felipe ouvia da janela nossa conversa, mas parecia não prestar atenção, continuava a olhar para o portão que rangia e batia com o vento lá fora.

-O pai tá chegando, Fábio. Vem comigo.

Sorri para a menina e segui Felipe para o corredor que levava aos quartos.

Fernando estranhou o portão aberto, mas com aquele vento não seria anormal isso, já que o trinco estava quebrado há meses. Correu até a entrada e fechou o guarda-chuva, jogando-o sobre o banco de madeira.
A porta destrancada lhe preocupou um pouco. – “Droga! Será que esqueci de novo de trancar essa porta? Ainda bem que a vizinhança aqui é tranquila!...” – pensou.

Susto mesmo Fernando levou quando entrou na sala e se deparou com aquela menina enroscada em seu cobertor, sentada no sofá.

-Quem é você? Que faz dentro de minha casa? – perguntou, com a mão ainda na maçaneta da porta.

-Desculpe, moço... É que seus filhos me deixaram entrar por causa da chuva e...

-Meus filhos? Aqueles ali? – falou Fernando, ainda assustado, apontando para uma foto grande na estante onde se via Felipe e Fábio sorridentes, abraçados ao pai.

-Sim, eles mesmo.

-Menina, você vai ter de me explicar isso melhor! Meus meninos morreram há seis meses num acidente de carro, junto com a mãe deles!

Tanto Fernando quanto a menina não viram, próximos ao corredor dos quartos, os espectros dos garotos, que se esvaneciam lentamente.

A chuvaOnde histórias criam vida. Descubra agora