Parte um

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A dançarina sentada ao meu lado acha que vai dar tudo errado em sua apresentação. O contorcionista logo atrás pensa que ele é melhor que todas as pessoas na sala e está convicto de que tem chances de vencer. E eu só quero sair daqui e fazer minha mente silenciar.

Os pensamentos de dezenas de pessoas misturam-se com os meus em uma confusão no emaranho da minha cabeça. É quase impossível manter uma linha de raciocínio e focar no que vou precisar fazer em seguida, mas tenho que me esforçar: talvez esta seja minha melhor chance.

Em meio à confusão meus olhos se voltam para um menino parado do outro lado da sala. Ele se encontra em perfeito estado de felicidade e sequer está nervoso para sua apresentação. O encaro por certo tempo e aos poucos percebo que a criança começa a se dissipar e em seu lugar meu eu de oito anos de idade vai tomando forma.

As roupas são as mesmas que eu usava naquele dia: camiseta vermelha e shorts azuis. O ar de tranquilidade, a sensação da mão da minha mãe segurando a minha, o calor do sol cobrindo a minha pele: tudo está igual. Posso ver claramente o homem de terno se aproximando e ele parece tão real que a sensação de sua presença faz todos os pelos do meu corpo arrepiarem.

"Neste exato momento lhe concedo a maldição; alma receptiva não se debata em vão; viverá com ela para sempre em seu coração" — As palavras ditas por ele ecoam incessantemente em meio aos meus pensamentos. A luz verde que seus olhos emitem em minha direção parece flutuar em frente a mim e é tão intimidante quanto era naquele dia.

Aquele foi o dia em que tudo aconteceu: o último dia antes de eu passar a ser visto como uma aberração; o último dia em que consegui sair na rua sem enlouquecer; o último dia...

— Olá! Você é o Jean Baldissera, certo?

Pisco. Meu eu desapareceu e do outro lado da sala só restou aquele menino, agora me encarando assustado. Na minha frente o anfitrião do show se encontra parado esperando por uma resposta.

"Agora não... Merda". Em um momento como este gostaria de ter recebido o poder da invisibilidade ao invés desta maldição.

Esforço-me para procurar pelas palavras certas em minha mente, mas não consigo me prolongar muito.

— Sou.

— Então, antes de você entrar no palco precisamos que fale seu nome, de onde você é, sua idade e o que veio apresentar hoje — Ele aponta para a câmera na mão do homem ao seu lado — Olhando pra essa câmera aqui, tudo bem?

Seu tom de voz é sério. Ele está com medo de mim por causa da minha aparência — e tenho que admitir, eu também teria.

Os dois homens me encaram esperando que eu comece a falar. Percorro os olhos pelas suas expressões faciais. "Esse cara parece um maníaco", "Certeza que ele vai ser mais uma das pessoas que vem aqui pra passar vergonha". Ambos repetem essas palavras em suas mentes, mas mantém sorrisos estampados em seus rostos. Falsos. Como todos os outros.

— Jean...? Já pode começar.

Tento desembaralhar as palavras na minha mente para formar uma frase direta e convincente. "Eu sou..." "Cara, que demora" "Jean... Meu nome" "Só quero ir pra casa e assistir um filme" "Telepata... Apresentação...".

É impossível.

— Eu... Meu nome é... Jean. Telepata... Eu sou... Isso. É o que vou... Fazer hoje.

Os olhos marrons do anfitrião percorrem meu rosto, tentando me decifrar. Tentando entender o que há de errado com o cara que mal consegue dizer seu nome olhando para uma câmera.

— Desculpe, mas... Poderia tentar outra vez? Tenta se soltar mais.

Fecho os punhos e os aperto. Sinto a pressão subindo até a cabeça e ocupando cada espaço de mim. Estou prestes a explodir. Tenho que fazer isso logo.

Volto-me para o palco e começo a andar, deixando os homens para trás. Eles gritam e tentam me impedir, mas é tarde demais.

O Telepata (conto)Onde histórias criam vida. Descubra agora