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          O aroma de ferrugem impregna minhas narinas com fervor. Abro meus olhos a passos lentos, a sensação da minha coluna protestando contra o esforço desnecessário na luta do dia anterior. Eu realmente deveria obedecer ao que Pollock diz.

Observo as goteiras tímidas no teto, agora parecendo uma decoração quase amigável, enquanto na noite passada me lembravam torneiras. As manchas de infiltração se espalham pela pintura envelhecida e descascada. Desvio o olhar para meus dedos, sentindo a dor aguda causada pelo frio. Puxo o ar e fecho os olhos.

Hoje será melhor do que ontem.

Não me arrependo da troca que fiz. Era um pão com queijo - um verdadeiro banquete aos meus olhos - ou o meu tênis. Tenho um chinelo dentro de casa e uma coberta para aconchegar meus pés de forma satisfatória, enquanto comida, essa tem sido uma escassez nas últimas semanas.

Alongo os músculos das minhas omoplatas e reclamo ao vento. A dor irrompe como uma onda avassaladora, uma lembrança constante do embate de ontem e do que virá hoje. Treinar depois de uma luta não é a atitude mais sábia que já tomei, mas se eu não o fizesse, me sentiria pior por dentro do que me sinto por fora.

Após cinco intensos rounds com Terrence Letto, finalmente o vi cair ao chão. A recompensa pela minha vitória, uma faca desgastada pela guarda de Imperium, parecia um troféu merecido dos figurões que nos observavam a cada noite. No entanto, não ajuda em nada a conseguir comida.

Passos vagarosos no chão manchado pelas infiltrações do andar debaixo me levam ao banheiro, que como todo o resto está em péssimo estado de conservação. O espelho quebrado mostra o reflexo de uma pessoa malcuidada e completamente exausta, o lábio cortado pela última luta me lembra de nunca abaixar a guarda novamente.

Meus cabelos estão gigantes e a tentação de cortá-los me atinge novamente, contando com o fato de que eles atrapalham muito na hora da luta. Se não fosse pela touca, eu já teria sido morta pela quantidade exorbitante de fios longos presos à minha cabeça. Deixo um lembrete na mente de arrumar uma tesoura ou terei que usar a faca para diminuí-lo.

Jogo uma água no rosto e desço as escadas dos dez andares abaixo do meu. O prédio fica na área desativada da Unidade Sete, onde as patrulhas passam todas as noites procurando por não-registrados, mas nos deixaram em paz há algumas semanas com a chegada do inverno. Na cabeça deles, nenhum de nós sobreviveria ao frio intenso deste lugar, mas não entendem que somos como insetos. Sobrevivemos as piores condições, mesmo que com muito esforço.

A rua está enevoada e vazia, as luzes estão baixas e a neblina toma conta do asfalto esburacado. A Unidade Sete é um dos polos comerciais de Imperium, e todos os lugares onde registrados habitam são dignos de aplausos. Ruas limpas e arquitetura moderna, com prédios majestosos e casas impecáveis. Mas a área desativada, ondem apenas os escombros da guerra se encontravam, permaneciam esquecidos.

Não é como se as pessoas se dessem bem com a radiação.

Me esgueiro pela viela que desemboca no que costumava ser a rua principal desse lugar. Lojas com placas desbotadas e vidros quebrados chamam a atenção e trazem ar de apocalipse, como se de uma hora para outra eu tivesse sido transportada para trinta anos atrás. Quando as coisas ainda eram estranhas, porém não tão ruins quanto são agora.

A Arena do Burke fica à dois quarteirões de onde moro, o que pode se considerar algo perto para alguém que não tem medo da patrulha. O que, infelizmente, não é meu caso.

Abro a pequena porta cinza e desço um lance das escadas de concreto, que me levam a outra porta preta com um pequeno buraco que só favorece quem está do lado de dentro, porque é alto demais para que eu veja algo. Dou três batidas que ecoam em um som seco dentro do ambiente vazio e fechado.

CHAOSOnde histórias criam vida. Descubra agora