Uma parede de distância

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Era um prédio no subúrbio de Niterói. Construído nos anos 90, carregando o desbotado laranja, era um edifício alto e conhecido de quem vivia na região. Próximo ao local, o comércio se agitava nas tardes de terça feira. Tudo corria bem para o trabalhador classe média da época. O baixo preço do dólar auxiliava a economia e a ideologia soberba da população carioca. Em um dos apartamentos, viva Cláudia. Recepcionista de uma lojinha de 1,99 da esquina. Como era início de semana, sua rotina era previsível até demais. Acordava às 7, se encaminhava para o serviço e, ao bater das 15, retornava para casa. Vivia sozinha, no auge de seus 34 anos, sendo tutora de um cãozinho idoso, chamado Rick. Não lhe interessou o matrimônio, pelo fato de ainda não ter achado o fatídico e mítico ''homem ideal''. Os meados de abril, época dos acontecimentos, era de grande calor no estado, a obrigando ir diretamente em direção ao chuveiro para refrescar-se do dia cansativo de trabalho. Animou-se, porém, ao lembrar de sua dupla para o show.

Separados por uma única parede, a do box, era a moradia se Josué. Homem já irritado com a vida, que desde sempre, nunca o trouxera nada de bom. Seus 40 anos batiam a porta e o histórico de doença na família lhe perturbava a mente, a notícia do falecimento de mais um integrante dos Quintanilha o derrubou. Quando batia 15 e 15 no relógio, sabia que teria de começar a se arrumar para ir à rodoviária. Trabalhava no centro do Rio de Janeiro, pegando no batente às 18. Dado o clima, precisava tomar um belo banho, que deveria durar o expediente todo, ou pelo menos parte dele. Alegrou-se levemente ao lembrar de sua dupla para o show.

Cláudia e Josué não se conheciam e, pela diferença de horários, jamais se esbarraram, mesmo estando morando a quase 7 anos no mesmo prédio. Porém, desde 1998 compartilhavam de um mesmo ritual. Pela proximidade, um tanto exagerada da moradia de ambos, no momento em que um entrava ao banheiro o outro sabia. E, como já fora exposto, tomavam banho quase no mesmo horário. Sendo Cláudia grande apreciadora da música, se deleitava cantando em todos locais, dava seu corpo e alma à apresentação sem plateia, deixava a água do chuveiro cair pelo corpo e seus vidros de xampu serem testemunha de seu talento. De início, Josué ficara incomodado com a barulheira vinda da vizinha, mas depois de meses se acostumou com a voz da mulher. Passado quase um ano, passou a acompanhá-la na cantoria.

Uma amizade nada convencional nasceu e mesmo compartilhando desse momento de descontração, nenhum dos dois havia visto a face do outro. A tonalidade da voz era tudo que conheciam. Cláudia passava a pesquisar duetos clássicos, para que cantassem juntos. Canções internacionais e nativas preenchiam a lista de possibilidades. Um encontro marcado pela tradição curiosa, não havia data marcada, mas era uma atividade, que tanto Josué e Cláudia, fizeram como diária. A mulher ia trabalhar e ao retornar para casa, sabia que o homem estaria do outro lado da parede, para acompanhá-la. Josué, ao bater 15 no relógio, começava a perceber alegria em seu mundo cinzento. Assim que o chuveiro era ligado, pigarreava, querendo limpar a garganta para cantar junto a sua amiga oculta. Passaram anos com a mesma sincronia, fazendo performances fabulosas ao som das gotas de água de ambos banheiros. Seguiam a vida depois do banho, como se não fosse um tanto incomum fazer duetos com um vizinho, do qual não se sabe nem mesmo o nome. Porém aquilo não importava. A descontração e liberdade que carregava aquela tradição era o que definia. Passaram-se anos, até que...

Em uma data festiva no final de dezembro, Josué recebe férias remuneradas e, pela primeira vez em quase 10 anos, decide dar uma volta no bairro onde morava. Não perdendo o karaokê improvisado, saindo de seu apartamento somente depois do show. Caminhou pelas ruas de asfalto e panfletos jogados ao chão. Procurava nada, somente admirar a beleza duvidosa da cidade carioca. Pessoas apressadas e animadas com a festividade. Os postes enfeitados com falta de capricho, bares começando a montar mesas para os clientes noturnos, que chegariam ao pôr do sol daquela sexta-feira. Passeava com as mãos nos bolsos, percebendo o que perdera enquanto mantinha o expediente começando às 18. Não era muito fã de sol, porém gostava de observar como as pessoas se comportavam, atividade difícil quando se sai de casa somente para trabalhar.

Cláudia, pela proximidade do Natal, teve de retornar ao serviço após sua cantoria com seu vizinho. Andou calmamente do prédio até a loja na esquina. Pensava que, um dia, gostaria de conhecer o homem misterioso com quem cantava todos os dias. Seria alto? Velho? Perdia-se em seus devaneios, até alcançar a porta de entrada de onde trabalhava. Espantou as ideias e focou em seu expediente. A época atribulada de dezembro significava mais dinheiro, portanto não se importava em passar mais horas no comércio. Achava, porém, que o movimento estaria maior. Seu chefe, um japonês, típico dono de lojas de 1,99, saiu, a deixando sozinha. Alegava que precisava conversar com um de seus fornecedores, mas Cláudia não era tola, sabia que o homem precisava comprar os presentes dos filhos, para depositar debaixo da árvore. Não protestou, dizendo que havia poucos clientes e que daria conta da demanda calma do dia.

Josué entrou em tantas biroscas, viu e ouviu tanta coisa que já se sentia sem energia. Decidiu encerrar sua aventura pelas ruas e rumou de volta para o prédio. Passou por uma lanchonete, uma locadora, um mercadinho e, ao virar a esquina, notou que havia entrado no lugar errado. Porém, já que estava próximo de casa, resolveu alongar sua peregrinação e conhecer o que havia ali. Uma loja de bijuterias, uma lojinha de 1,99 e uma pizzaria. Ao ver a fachada do comércio japonês, lembrou-se que precisava de pilhas. Com isso, foi em direção a loja de 1,99. Ainda com as mãos nos bolsos, adentrou o ambiente, porém congelou ao passar da porta.

A mulher, ao ser deixada sozinha tomando conta do local, resolveu organizar algumas peças do estoque e da vitrine. Passeou pelo ambiente e, sem se dar conta, começou a cantarolar a música que cantara no dia com seu vizinho. Começou baixo, como se imitasse os instrumentos da canção, mas foi evoluindo, até que começara a expor a letra com emoção, em voz clara e alta. Se empolgou tanto que, até mesmo dançava, enquanto arrumava as peças penduradas atrás do balcão. Remexia o corpo e sua voz preenchia o local. Sentia-se feliz, gostava em demasiado do canto e da música como um todo. No auge de sua distração, não notou que um cliente adentrara. Ao balanço da música e da movimentação, virou-se para a porta, vendo o rosto catatônico de um homem. Barba rala preta, cabelos falhados na frente e olhos tipicamente brasileiros. Mortificada de vergonha, pigarreou e ajeitou as vestes, a fim de atendê-lo.

- O que deseja, senhor? – ela pergunta, ainda tímida por ter sido pega em flagrante, dançando e cantando, como se estivesse em sua morada.

O homem nada responde, apenas permanece de olhos arregalados e caminha, lentamente, em sua direção. Deixando-a apreensiva, no aguardo de uma reposta. Ao chegar no limite do balcão, Josué parou, observando a mulher à frente, ainda questionando internamente se ela era sua vizinha. Com o silêncio ainda presente, Cláudia se pronuncia.

- Senhor? Deseja algo? – O homem engole seco. Não sabia o que dizer, queria perguntar-lhe se era a mulher com quem passava cantando às 15. Seu tom de voz era idêntico, tanto que o fez parar e se assustar à porta. Reconheceu de imediato aquela voz, que tanto trazia alegria ao seu mundo tristonho e rancoroso. Mas, como questioná-la? Não sabia seu nome, nem o apartamento em que morava...

- Senhorita... permita-me realizar uma pergunta, nada comum.

Não formulara um plano, apenas tentaria explicar sua futura pergunta e torcer para que fosse compreendida. Cláudia ouvia despreocupadamente. Pensava que ele perguntaria se existiam lanternas amarelas e de bolinhas azuis a venda. Sua carreira de vendedora lhe permitia não ser surpreendida facilmente.

- Cantou ''Endless Love'' hoje, às 15 horas?

Pela primeira vez, um cliente a chocara. Abriu a boca em surpresa. Gaguejou ao tentar responder, mas ao final apenas jogou outra questão, uma um tanto preocupada.

- Como o senhor sabe disso? Quem é?

A alegria tomava conta de Josué. Conhecera a mulher que lhe divertia as tardes. Não podia conter o sorriso que se expandiu em seu rosto. Respondera à pergunta, meio ofendida da mulher, com extrema animação. Coloca ambas mãos ao peito e falava, com um brilho no olhar.

-Sou eu! Sou sua dupla! Sou eu do outro lado da parede!

Cláudia ainda estava atônita, permitindo que, durante minutos, o homem explicasse quem era. Conversaram durante mais de meia hora, se apresentaram e, quando o chefe da mulher retornou, a liberou mais cedo, permitindo que os vizinhos saíssem, pela primeira vez. Papearam até o cair da noite, onde retornaram juntos para casa, convidando um ao outro para conhecerem os apartamentos. Eram amigos desconhecidos e, naquele Natal, ganharam o maior presente de todos, saber quem era do outro lado da parede. 

Edição contosOnde histórias criam vida. Descubra agora