Capítulo Dois

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Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.

— Cantares do sem-nome
e de partidas, Hilda Hilst


#DerramandoVinhoTinto🍇

Ainda sentia o desejo inconformado em si querendo extravasar. Meios luminosos bruxeleavam cidade abaixo e ele captava com sutileza o que Min Yoongi, em sua chegada recente ao hotel, denominou como o luzeiro dos homens humanos. 

Havia abandonado toda a corte de seu mensageiro para mergulhar ainda mais profundamente no som insistente que aquele corpo humano faz, deixando os pensamentos guiarem-se em sua mente transitória como o fluído barulhento aflorando e correndo em seu corpo a cada segundo.

Estava tentando se familiarizar. Conhecer aquele corpo simplificaria a experiência neste mundo e passar por esse processo em tempos despendidos sozinho parecia uma boa maneira de fazê-lo. Inicia-se primeiro pelo arrastar quente e letárgico do líquido banhando suas veias, depois pela maneira singular como o corpo humano passa à sua aura divina, através dos químicos do cérebro, das reações e dos reflexos, as sensações — após esse processo inicial, deixaria com que todo o resto viesse naturalmente. Desvendaria pouco a pouco, sendo paciente como jamais foi.

Agora, olhando através da janela de vidro para toda a cidade situada abaixo, satisfeito com a superfície transparente que toma toda a parede lateral do quarto e permite a entrada de luz abundante, tentava decifrar os processos ocorrendo em si — ou, bem, na forma em que se encontra.

Quase ria enquanto brinca com a língua lá para cá nos lábios levemente repuxados num sorriso condecorado. 

Havia um barulho abafado e irritantemente cadenciado soando por todo o quarto de hotel; pensava ser o relógio de pulso, reafirmando sua presença irrevogável no universo onde se encontra, mas não poderia ser, não quando a cacofonia desse lhe é tão familiar e seu barulho nunca tenha passado de um simples tic-tac muito bem ritmado e baixo, cujo incômodo era facilmente ignorado. Aquele outro em específico adentrava sua mente, cruelmente notável, como se até mesmo esse mundo terreno tivesse a vontade ininteligível de perturbá-lo. 

Talvez fosse, grosseiramente, a maquinagem do elevador que leva até seu andar, funcionando durante um período de tempo incômodo e desarmando por poucos minutos cronometrados. 

Assim como quando estava no palácio, ser relembrado dos minutos passando de maneira irrefreável não apresenta um sabor adocicado, mas o faz engolir a seco em desconforto. 

Estar parado desta forma, destituído da fluidez natural que seu corpo em aura¹ costuma possuir, é submetê-lo a um processo de degradação lenta. Não está acostumado ao ócio obrigatório; não se reconhece da forma séssil de agora. A passagem constante do tempo e sua incapacidade de agir não deveriam coexistir, reafirmando um ao outro sua existência maldosa, disputando entre si qual desses tomará o espírito imbatível de Taehyung primeiro, pois é impossível coordenar um reino — ou quem dirá a si mesmo — quando se está impossibilitado de fluir tal qual as horas.

Se livrou do relógio de pulso há poucos minutos, largando-o sobre o colchão macio da cama do quarto e deixando para trás o que era possível abandonar desse pensamento, mas não poderia fazer nada sobre o outro som que segue o mesmo ritmo do passar dos segundos, aparentemente; não poderia fazê-lo à sua consciência.

Manejar sua paciência ali, lançado às incógnitas daquele novo mundo, seria desafiador, ainda que nada ali o afrontasse particularmente; estava apenas, com ainda mais intensidade, à mercê de seus sentidos. 

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⏰ Última atualização: Feb 09, 2022 ⏰

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