Terror aos navegantes

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"Essa nossa terra é de Deus, mas as dores da nossa gente, ah ... essas são do Cão".

O menino ficou calado. Sentiu o peso das palavras que o ancião lhe dissera dias depois do ocorrido.
O mar sustentava a vida daquela comunidade.
De geração em geração, desde a fundação do vilarejo, o ofício da pesca era levado através tempo.
No coração da vila havia uma pequena capela dedicada a Nossa Senhora dos Navegantes. Rústica mas muito bem cuidada, fora pintada de branco e azul celeste, as cores do traje de sua padroeira.
Na parede, atrás do pequeno altar de tábua, ficava a imagem da santa que zelava pela vida dos pescadores, enquanto esses enfrentavam o sol e o sal.
Naquela terça-feira, nublada e abafada por ventos quentes, as crianças brincavam na ponta da praia. Costuravam as pedras do canto direito enquanto perseguiam os bichos-de-conta, como chamavam as baratas-de-praia, quando a mais nova do grupo viu os pés imóveis de alguém oculto por uma grande pedra, um pouco mais afastada da faixa de areia molhada.
Sem aviso, a curiosa menina seguiu em encontro do corpo caído.
Seu grito, alto e agudo, interrompeu a brincadeira das outras crianças, que em bando correram até lá.
Os cabelos, grisalhos cheios de areia, cobriam os olhos fechados de Dona Iraci.
A velha exibia toda a sua experiência da longa vida a beira mar na pele grossa e talhada, de um dourado escuro tingido de sol.
Suas mãos tinham trazido ao mundo as três gerações mais novas da vila. Era a parteira, curandeira e, geralmente, tinha as respostas para as aflições do vilarejo.
O mais rápido dos meninos saiu disparado em busca de ajuda. Em poucos minutos algumas mulheres da vila já cercavam Dona Iraci, enquanto aguardavam a chegada de Pai Otó.
"Velho Chico", como normalmente era chamado, era o homem mais velho do lugar, ainda mais velho que Dona Iraci. Dono de uma sabedoria natural, compreendia bem o céu, o mar e o homem. E assim tinha o mais alto respeito e admiração de todo o povoado.
Apesar de toda sua sabedoria já não tinha forças para a tarefa de levantar e carregar a velha amiga.
Cuidadosamente, as mulheres ergueram Dona Iraci e a colocaram sobre a maca improvisada.
Enquanto a carregavam para a casa de paredes vermelhas, Pai Otó resmungava pelo caminho, repetindo o que já havia falado insistentemente para os homens naquela manhã. Mas fora ignorado completamente.
Ele sabia que naquele dia havia algo errado, no ar e na água.
Ao ouvir o apelo do velho os homens responderam lhe dizendo que aquela estava sendo a melhor quinzena em longo tempo. O clima se mantinha perfeito nos últimos dias e a pesca rentável.
Confiaram que com o avanço da manhã o céu se abriria no mesmo azul puro do dia anterior, e que em algumas horas estariam de volta com uma farta carga de pescados.
Acomodaram a mulher desacordada em sua cama, as crianças ficaram do lado de fora como ordenou a irmã da anciã, Iaiá, que assumia a situação.
Ela também conhecia os segredos da sabedoria curandeira. Havia sido criada junto com sua irmã e recebido a mesma educação de sua avó, a maior curandeira que já havia vivido naquele lugar.
Do lado de fora as mulheres oravam para Nossa Senhora dos Navegantes.
Dentro de casa, Iaiá macerava as ervas e raizes que coou no pano de algodão, extraindo um líquido marrom esverdeado.
Primeiro passou o pano com a borra restante junto ao nariz de sua irmã.
Recobrando a consciência, lentamente abriu os olhos e compreendeu onde estava e o que estava acontecendo.
Tomou a caneca das mãos da irmã e tomou o líquido em um único gole. Sua expressão de amargor e arrepio confirmava a força daquela mistura.
Devolveu a caneca e se sentou de lado na cama, com a expressão abatida e os ombros derrubados. Fez em segredo uma confissão a irmã, que aflita e assustada derrubou a caneca no chão.
As duas se abraçaram por um longo período.
Já era fim de tarde e não havia sinal dos pequenos barcos. Com os olhos cerrados, Velho Chico encarava o céu escuro e o mar agitado. Se ajoelhou na areia enquanto as primeiras gotas de chuva espetavam o rosto erguido ao céu.
As mulheres recolheram as crianças dentro de casa. A vila ficou em silêncio.
O velho insistiu em manter os joelho na areia e o rosto erguido. De olhos e boca fechados permaneceu ali enquanto a chuva se tornava mais densa e forte.
Até que alguém o levantou pelos braços e o tirou de lá. Se escorando na jovem o velho tomou o caminho de casa.
No quarto de Dona Iraci as coisas ficavam complicadas. Sentindo uma forte dor de cabeça, espasmos, tremores e agudas pontadas no estômago, a mulher fervia em febre.
Ir até a cidade era impossível, aquela chuva tornou-se um terrível tempestade enquanto noite escura se abatia sobre o vilarejo.
Os homens não retornaram.
Aflitas, as mulheres deixaram as crianças em casa e se reuniram na capela para discutir a situação.
A energia elétrica começou a falhar. Primeiro as lâmpadas piscaram rapidamente e se firmaram a seguir. Mas pouco tempo depois se apagaram de vez.
Primeiro a capela, em seguida uma a uma as casas foram se apagando até que a vila ficasse em total escuridão.
Sob a  fraca luz das velas, Iaiá seguia preparando uma segunda mistura.
Feita de outras ervas, o líquido amarelado pareceu agradar mais a irmã, que tomou o líquido sem demora.
Ao pegar a caneca vazia das mãos da irmã, Iaiá percebeu os tremores ainda mais  violentos.
Na capela, sob a luz das velas, as mulheres rezaram.
Velho Chico parecia saber de alguma coisa. Agitado se levantou e decidiu ir até a casa de Iraci. Ao sair de casa viu que a água invadia a vila.
A cada agulhada no estômago, um horrível grito de dor de Iraci.
O Velho Chico notou pedaços de madeira pintada, que flutuavam nas águas que invadiam rapidamente as ruas de terra. Eram destroços dos barcos pesqueiros.
Perdeu o equilíbrio e caiu com a correnteza da água que alcançava seus joelhos. Se agarrou na pilastra de madeira da varanda e resistiu.
Na cama, Iraci sofria com as fortes dores. Gritava escandalosamente.
Iaiá temia pela vida da irmã, que agora vomitava um líquido viscoso e preto. Mal conseguia respirar.
Quanto mais forte as dores de Iraci, mais forte eram as ondas. Quanto mais ela gritava mais intensa era a reza de Iaiá.
Com a capela sendo invadida pela água, as mulheres temiam pelas crianças e histéricas desafiaram a força das ondas em busca de seus filhos.
O Velho Chico não cedeu à força das ondas. Sabia que aquilo não era uma tempestade comum. Se lembrou das antigas lendas contadas por seus antepassados.
Nunca acreditou naqueles histórias, mas sabia o que deveria ser feito e seguiu para a casa de paredes vermelhas.
No caminho viu uma de suas vizinhas sendo arrastada em meio a lama. Não pôde ajudá-la, tinha urgência em acabar com aquela loucura ou as consequências seriam ainda piores.
A tempestade se acentuou e o homem aproveitava a luz dos raios para enxergar o caminho e seus obstáculos.
Entrando na casa viu Iaiá desmaiada no chão, enquanto a água invadia o cômodo prestes a afogá-la.
A velha amiga parecia ter enlouquecido. Sentada na cama, seus olhos estavam completamente negros, da mesma cor da substância viscosa que escorria por sua boca. Ele mal a reconhecia. Sua roupa estava suja, toda manchada pela substância que tinha vomitado. O cheiro do cômodo era horrível, como peixe putrefato.
Com a voz distorcida, a velha repetia palavras incompreensíveis. Nunca antes escutadas pelo velho amigo.
Então, a mulher começou a gritar ensandecida e conforme os gritos aumentavam cresciam também as ondas por entre as casas da vila, arrastando tudo que havia em sua frente.
O senhor se aproximou da mulher, que o encarou e o atacou, arranhando profundamente seu rosto.
O Velho agarrou suas mãos e pode ver sua pele debaixo das unhas sujas da velha, que lutava para libertar seus pulsos das mãos do homem.
Então, Velho Chico pegou o travesseiro ao lado de Iraci e o colocou contra seu rosto. A mulher esperneou enquanto dava socos e arranhões no velho companheiro. Com toda sua força ele apertou o travesseiro, sufocando a mulher que enfim parou de reagir.
Exausto, o homem rolou para o lado tomando fôlego, estendido ao lado da amiga.
A energia voltou. A tempestade silenciou.
Aos poucos as mulheres e crianças saíram de casa.
Assim que os primeiros raios de sol clarearam o céu, ondas suaves e gentis devolveram os homens à terra. Todos vivos.
Aliviadas, as mulheres oravam em voz alta para sua santa protetora.

"- Nossa Senhora dos Navegantes, Filha de Deus, o criador de tudo; protegei-me dos ventos, tempestades e ressacas. Que nenhum empecilho ou surpresa indesejada mude minha rota ou atrase a minha viagem. Minha vida é a travessia de um mar furioso. As tentações e as desilusões são como as ondas furiosas desse mar, que ameaçam afundar a mim e minha embarcação no abismo do desânimo e do desespero..."

No quarto, ao lado do corpo da velha amiga, Velho Chico chorava.

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