O tempo engole a gente feito fera

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A tempestade que desabou sobre o Recife cessou há algumas horas, mas a atmosfera continua úmida, pesada. Já é quase madrugada, mas como de hábito nas últimas duas semanas, eu não conseguirei dormir até que o sol despeje seus primeiros raios sobre os meus olhos cansados e inertes. Então, eu adormecerei por pouco tempo antes de acordar aos gritos, enfrentando o mesmo pesadelo, diante daquela figura negra, aterradora, de olhos vermelhos.

Do pequeno notebook na mesa ao lado da minha cama vem a mesma música que não sai da minha mente há dias."O tempo engole a gente feito fera". E da janela do meu quarto, no primeiro andar do velho sobrado que agora está mergulhado no silêncio, observo a escuridão que toma conta do centro velho do Recife. Lá na esquina, sob a copa de uma centenária jaqueira, vislumbro aqueles mesmos olhos vermelhos que há dias me vigiam, aparecendo sempre perto da meia-noite. Os mesmos olhos do pesadelo recorrente. Não consigo identificar mais nada sob o manto pesado da noite, mas não é preciso. Eu já conheço o dono daquele olhar flamejante. Saio da janela e volto para o notebook, onde estou trabalhando desde cedo.

Tudo começou quinze dias atrás, quando eu tinha uma vida normal, meu sono era regular e não tinha pesadelos. Fui encarregado de vistoriar um grande terreno que a empresa para a qual trabalho comprou no município paraibano de Princesa Isabel, próximo à divisa com Pernambuco. Tudo o que eu sabia era que a propriedade estava abandonada desde meados dos anos 20 do século passado. Deveria conferir se tudo estava de acordo com o que havia sido descrito no contrato de compra e venda, e isso incluía visitar todas as edificações e benfeitorias da imensa propriedade. Comecei o trabalho logo que cheguei à cidade, acompanhado pelo neto do antigo proprietário da fazenda, um jovem agricultor sempre bem humorado chamado Antônio Augusto, e que desde o início se mostrou disposto a me auxiliar a concluir o mais rapidamente possível o serviço, certamente interessado em receber o quanto antes a sua parte na herança pela venda do terreno do avô. No final do segundo dia já havíamos conferido praticamente tudo, faltando apenas uma modesta casa de moradores localizado numa das extremidades do terreno, distante dois quilômetros do casarão que servia como sede da fazenda, e que havíamos terminado de vistoriar. Já era próximo das seis horas da noite, mas eu não queria perder outro dia na cidade e pretendia retornar a Recife logo na manhã seguinte. Avisei a Antônio da minha intenção assim que entramos no carro, e senti sua fisionomia, disposta e alegre, se transformar em uma fração de segundos.

- Doutor, pelamor de Deus, deixe essa casa pra lá. Não precisamos ver essa daí não, ainda mais que já anoiteceu!

Terminou de falar e fez o sinal da cruz três vezes. Fiquei intrigado com a reação de Antônio, mas eu tinha uma obrigação a cumprir, e não podia deixar que eventuais falhas comprometessem a minha imagem de profissional competente na empresa.

- Que é isso, homem? Tem fantasma lá, por acaso?

Antônio ficou calado, olhar perdido no horizonte que recebia os últimos raios de sol. Esperei alguns segundos, imaginando o que se passava na sua mente até que, vencido pela curiosidade, falei:

- Tudo bem, Antônio! Se resolver me dar um bom motivo para não irmos até lá, talvez eu deixe essa visita para amanhã.

Ele ficou alguns minutos em silêncio, talvez examinando como começar a história, ou mesmo se deveria me contar algo. Quando já estava prestes a dar partida no carro, ele começou.

- Aqui sempre foi terra de cangaceiros, doutor. Meu avô mesmo, várias vezes hospedou Lampião nessa casa grande aí...

Mesmo tendo nascido em Recife nunca tive curiosidade em conhecer a história do Nordeste, mas certamente já tinha ouvido falar de Lampião, que com seu bando de cangaceiros havia aterrorizado o interior da região numa época que eu nem sabia precisar. Entre minhas divagações, ele continuou:

O tempo engole a gente feito feraOnde histórias criam vida. Descubra agora