Tortura. Essa era a resposta para o meu silêncio, o símbolo da minha lealdade, que constantemente era perturbado pelo símbolo da minha fraqueza: os gritos de dor que cada descarga elétrica me forçava a emitir, em um ciclo interminável de agonia. Se eu estivesse são o suficiente para me lembrar de quem inventou a eletricidade, o teria amaldiçoado mil e uma vezes. O frio daquela sala mal iluminada cortava minha pele mais do que qualquer navalha, e me fazia inconscientemente desejar a morte a cada fatídico segundo que eu percebia que ainda estava vivo – ou quase isso. De ponta-cabeça e nu, amarrado no que os ouvi chamar de "pau-de-arara", o sangue que fluía para a minha cabeça trazia à tona memórias de um passado não tão longínquo, mas que mesmo assim parecia a uma eternidade de distância. Tudo que eu queria era me agarrar aquelas memórias, mesmo as mais terríveis. Tudo era melhor do que aquilo.
Ele ainda não falou? – foi o que pude escutar da voz abafada, que parecia vir de um homem.
Seu comunistinha de merda! – ouvi de novo, de uma voz mais próxima, mesmo que meus olhos estivessem inchados o suficiente para que eu não visse nada além de uma alta e escura silhueta.
Foda-se, ele não vai abrir o bico. Passarinho que come pedra sabe o cu que tem. – disse a primeira voz, que parecia mais distante.
E o que o senhor quer que eu faça? – perguntou uma nova voz, mais aguda e frouxa. Parecia hesitante.
Um silêncio perturbador assolou a sala, e me fez crer que a primeira voz havia respondido com um gesto. Ouvi uma porta sendo aberta e batendo com força em seguida, soprando um pouco de ar quente para dentro do lugar. Devia estar fazendo calor lá fora. Por alguns segundos, tive o prazer de delirar com uma praia quente e ensolarada, repleta de famílias felizes, entorpecidas pelo barulho relaxante das ondas do mar. Infelizmente, fui trazido de volta a realidade com um barulho muito familiar: o som de uma arma sendo engatilhada.
Eu traria um padre, mas você não merece. – foi o que ouvi, antes de sentir algo gelado tocar minha testa.
Era isso, eu estava prestes a ser executado, e não havia escapatória para mim. Todos os meus sonhos seriam estraçalhados pelo tiro e sairiam voando pela parte de trás da minha cabeça junto com os miolos que escapariam. Mas aquilo não era o que mais preocupava minha mente nebulosa e prestes a quebrar, e sim uma questão relativamente simples, que eu repeti dezenas de vezes enquanto era espancado, eletrocutado e mutilado: como parei aqui?
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Como parei aqui? - Ditadura Militar
Action"E que eu por ti, se torturado for, possa feliz, indiferente à dor, morrer sorrindo a murmurar teu nome" - Liberdade, de Carlos Marighella