Uva com Sabor de Melancia

268 6 7
                                    

Um conto de Davi Nícola.

A fruta estalou em minha boca. O líquido preencheu a região e uma gota transbordou, escorrendo pelo canto dos meus lábios e respingando na soleira da janela. Mas eu nem notei. Uma multidão berrava e pulava ao meu redor. Eu mordia a talha da melancia vorazmente, como se aquilo pudesse preencher o vazio de não estar ali. Mordia aquilo feito pipoca na boca de quem espera um grande filme começar. Devorava tudo vendo o espetáculo de máscaras e fantasias abaixo de mim.

Pessoas contornavam os obstáculos do asfalto como se fossem um só ser. Balões, confetes e serpentinas granulavam a massa daquele grande bolo humano. Corpos de todos os formatos exalavam suor e alegria, e rostos cobertos de todo tipo de máscara e maquiagem vibravam.

"Eu deveria me arriscar", pensei. Meus pais já tinham saído há dez minutos, e a esse ponto ninguém voltaria em busca de uma bolsa ou carteira esquecida. Sem contar que, se eles já tiveram que se contorcer para ir à igreja na contramão do bloco em movimento, não cogitariam marchar de volta na mesma direção e serem confundidos com aqueles pecadores mortais.

"Mas ir fantasiado de quê? De crente?", um outro lado de mim questionou, e eu revirei os olhos pensando no guarda-roupas cheio de golas polo, ternos e largas calças escuras. A fantasia era só um dos problemas. E se algum parente ou vizinho enxerido me visse e contasse para meus pais? Dei mais uma grande mordida raivosa na fruta. Tudo o que eu queria era minha independência logo. Um dia minha maioridade parecia bastar, mas não bastava. Agora, eu precisava de muito mais que dezoito anos. Eu precisava do meu próprio espaço e do meu próprio dinheiro.

– Já que está tão doente, fica. Nós levamos a chave. E nada de dar moral pra essa gentinha aí fora. Você sabe quem é o senhor desse povo.

Eu podia ouvir as palavras irônicas de minha mãe como se tivessem sido ditas agora. Mesmo eu não admitindo, ela sabia que eu tinha perdido o interesse pela igreja há muito tempo. Ela, por sua vez, não havia perdido o interesse em me puxar de volta constantemente. O que ela não sabia de fato era que eu tinha uma chave reserva, feita no chaveiro da rua do cursinho. Depois de tantas ameaças, eu me munia como podia. Consenti com suas palavras e esperei deitado na cama até o portão ranger.

Da janela na sacada eu pude ver meu pai e minha mãe caminhando pelo pequeno espaço que sobrou da calçada. Suas bíblias os protegendo, não do sol, mas das visões horríveis ao seu redor. Eu não consegui rir da cena. Aquela distância de realidades era, para mim, cruel demais. E eles eram os causadores disso tudo.

Quando eles sumiram na esquina, meus olhos se perderam naqueles corpos, naqueles rostos e naquela energia. Meu estômago roncou, e como eu não pretendia fazer mais de uma viagem até a cozinha, parti uma grande talha de melancia.

Agora eu estava ali, vendo pessoas caminharem a um quilômetro por hora. Se era o dia, a lua ou toda aquela gente, eu não sabia, mas uma força completamente vigorosa tomava conta de mim. A energia percorria cada centímetro do meu corpo, como se eu acabasse de acordar de um daqueles sonos raríssimos que nos fazem sentir como se acabássemos de nascer novamente. E como se acabasse de acordar, eu estava de pau duro. Não por alguém específico na multidão, mas por imaginar as possibilidades da vida que eu poderia ter um dia.

Ver aquelas pessoas me fazia relembrar do quão pouco eu tinha vivido fora do triângulo quarto, escola e igreja, e fora disso, tudo se resumia aos acampamentos de jovens. Bom, no fundo aquilo ainda era a igreja, mas o último deles foi completamente diferente. Lá, eu tive minhas primeiras experiências sexuais, e foi lá que eu descobri um pouco do universo que me cercava. Os rostinhos cheios de brilho abaixo da minha janela me transportavam de volta para dois anos atrás, e por mim eu ficaria ali o dia inteiro.

Uva com Sabor de MelanciaOnde histórias criam vida. Descubra agora