A luz passava pelos olhos semi-abertos de Andoras, seus cabelos longos caiam parcialmente pelo seu rosto enquanto era arrastado pelos corredores do subsolo. Seu corpo esbranquiçado, coberto de tatuagens em formatos de pontos geométricos estava desnutrido, vivendo os últimos anos com o minimo possível, sua carne era como um filete de água que escorria de um telhado em dia de chuva, caso fosse um humano ou qualquer uma das outras quatro raças que compunham os habitantes do continente, ele estaria morto, mas sua natureza Belizar o mantinha naturalmente preparado para situações extremas mesmo que o fio da vida estivesse prestes a se romper.
O chão ralava seus joelhos bambos e seus braços dormentes mal podiam sentir o aperto forte e ignorante dos dois guardas que o levavam pelos blocos de celas. O barulho do tilintar de suas botas de metal poderia ser para o prisioneiro o som de fundo perfeito para os feixes de luz que entravam pelas janelas altas das celas.
Sua respiração era tão suave que se não fosse pelo seu peito que enchia-se, poderiam acreditar que estava morto. Sua boca nos últimos dois dias apenas servia para coletar as poucas gotas de chuva que escorriam no final da tarde, seus lábios estavam quebradiços como os pedregulhos que compunham as vielas da cidade que acima de onde estava permanecia viva e animada, onde crianças brincavam imitando seus pais levados a guerra, imaginando aventuras heroicas logo acima dos prisioneiros que eram rechaçados em segredo.
Mas para Andoras era pior, era diferente. Sendo o único e atual de sua raça capturado, o Belizar ainda estava sendo estudado, claro, pois tinha sido um dos únicos a ser capturado vivo nas batalhas do Império contra a força continental. Não fosse pela obrigatoriedade do alistamento, Andoras estaria agora levando seu irmão mais novo para os rituais de maturidade em sua terra natal, o Arquipélago de Shar.
- Ainda devem estar esperando meu retorno? - Andoras pensou deixando sua cabeça afundar em seu peito, deixando o queixo tocar seu tórax esquelético.
Os guardas saíram do longo corredor de celas e Andoras pode ouvir todos os berros de prisioneiros sofridos voltarem ao fecharem a porta na troca de cômodos. Era normal que fossem punidos os que perturbassem o silêncio dos guardas, mesmo os de mais baixo posto ou até mesmo serviçais. Nas ruas do Império se não fosse humano estaria convidado a se unir aos de raças diversas que habitavam o submundo de torturas.
Andoras já sentia os joelhos deslizando pelo sangue que escorria de suas feridas quando ouviu a porta de madeira se abrindo da mesma forma, sempre nos primeiros dias do mês. Mesmo que tivesse perdido a conta de quantos dias se passaram desde o seu cárcere, ele poderia contar as vezes que havia ouvido a porta se abrindo, com o mesmo ranger na terceira dobradiça e arrastar na quarta tábua que compunha ela.
A iluminação do local era fraca e o chão era úmido, independente de estarem agora a quase 2 andares do subsolo. O prisioneiro Belizar foi arremessado para cima de uma mesa, lembrando ao bater sua nuca no metal das primeiras vezes em que fora colocado ali ao qual ele lutou ferozmente e até mesmo chegou a quebrar dois dedos e o nariz de Buckethead. É claro que o soldado Steinspieler não tinha quaisquer semelhança com este apelido dado por Andoras, mas foi uma das formas que o Belizar tinha utilizado para identificar o guarda que sempre o agredia e hostilizava durante seus turnos na madrugada.
- Ele está calminho hoje, aproveite para tirar o máximo possível. - O ultimo guarda ao sair bateu a porta de uma forma mais calma do que havia feito das ultimas vezes.
A visão turva de Andoras se acostumou com a iluminação e pode ver a figura se aproximando, uma silhueta curvada e pequena, de uma pessoa que já havia muita experiencia de vida e de seu ofício de pesquisador. Um humano já de pele enrugada e de poucos cabelos brancos pendendo de sua cabeça trajava em seu corpo um avental de couro limpo e um cinto com as mais variadas tesouras e alicates que o Império poderia fornecer se aproximou do Belizar. O queixo dele batia quase no peito de Andoras por sua altura, utilizava dois círculos de vidro presos a uma tira de couro a frente de seus olhos e carregava consigo uma feição humilde, algo que era um sopro de liberdade para um prisioneiro tão avariado quanto o Belizar.
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Legacy
FantasyUm solitário Belizar deve se aventurar por um continente que busca sua cabeça, na esperança de fugir para o arquipélago onde sua raça habita, será que Andoras conseguirá se salvar? Arte feita por Skitamine (https://www.instagram.com/skitamine/)