CATARINA

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  Acordei com Miguel abrindo as cortinas e cantando alto uma música que eu não identifiquei, depois de me fazer perder a compostura e xingá-lo por ter me acordado com o sol ainda nascendo, finalmente criei coragem para levantar e tomar um banho antes de sair, já que não sabia quanto tempo a mais levaríamos até o chale da minha família.
Depois de arrumarmos nossas coisas, devolvemos a chave do quarto e seguimos viagem.
  Pouco menos de uma hora depois, enquanto cantarolava uma música da rádio, observei a placa escrito "São Francisco de Paula", a vaga lembrança da última vez que estive naquela estrada invadiu minha mente por alguns segundos.
Estava sentada no banco de trás ao lado de Louise e com minha cadelinha, Paris, no colo, meu pai dirigia e após passarmos da placa que indicava que estávamos há apenas mais meia hora até o chale, Roberta gritou para que ele parasse e fez meu pai e todos nós termos um pequeno ataque do coração, mas então ela apenas apontou para uma loja de produtos locais do outro lado da rua. Depois de quase meia hora, ela voltou com duas sacolas cheias de salames, queijos, vinhos, que mais tarde nos serviu como um ótimo aperitivo na lareira.
-Estamos quase chegando... _Murmurei.
-Sim, é o que diz o meu GPS, talvez mais uns vinte ou trinta minutos.
-Já que estamos oficialmente fora de perigo, podíamos fazer uma paradinha rápida.
-Não acredito que aqui no meio dos matos e da neblina você encontrará uma loja de grife, pode tirando seu cavalinho da chuva! _Ele disse, e fiz uma careta, que ele não viu já que estava concentrado na estrada nebulosa.
-Não, seu idiota... _Murmurei, e então avistei a lojinha, me pareceu que eles ainda estavam abrindo. -Aqui, encosta o carro.
-Catarina...
-Anda Miguel, vai me agradecer mais tarde.
Mesmo que contrariado ele encostou o carro e me acompanhou até a loja, já que no momento era ele quem estava em posse do único dinheiro que tínhamos.
Assim que entramos fomos muito bem recebidos e Miguel ficou tão animado quanto eu assim que viu a prateleira cheia de queijos e goiabadas. Acabamos com mais da metade do dinheiro, mas voltamos para o carro satisfeitos e felizes por termos toda aquela comida para desfrutar mais tarde.
O resto da viagem durou apenas mais alguns minutos, a rua em que ficava a casa era incrível, cheia de árvores frutíferas, flores, e o mais importante, sem vizinhos próximos. Desci para abrir o portão de madeira e esperei Miguel entrar com o carro no quintal da casa, após fechar o portão, observei ele sair do carro e encarar a imensidão a sua frente.
Eu mesma havia me esquecido de como aquele lugar era lindo e diferente de tudo o que conhecíamos da cidade grande. Assim como na rua, do lado de dentro também era cheio de flores, tinha um balanço no quintal e um pequeno lago.
-Eu não sei como ainda me surpreendo com a riqueza de vocês, mas aqui estou eu me sentindo em uma cena de filme. _Ele murmurou, virando-se para mim. Dei risada da reação e das palavras dele.
-É incrível mesmo, observando agora fico me perguntando porque não frequento mais este lugar...
-Apesar de toda a imensidão e luxo, o que mais me chamou a atenção foi aquele balanço! _Ele apontou.
-Nossa, aquilo tem história, na última vez em que viemos aqui eu tinha treze anos, eu e Louise não saíamos do quarto, sempre com nossos tablets na mão, simplesmente não aproveitávamos o lugar, então meu pai nos obrigou a largar os eletrônicos e ajudá-lo a contruir aquele balanço, demoramos dois dias para concluir, mas depois de pronto passamos o resto das férias tirando um tempinho para nos divertirmos nele.
-Não consigo imaginar você fazendo trabalho braçal, muito menos contruindo brinquedos! _Ele disse, rindo.
-Tem muito que você ainda não sabe sobre mim, Miguel. _Falei, piscando para ele, quando na verdade eu apenas tinha segurado os parafusos enquanto meu pai fazia todo o trabalho pesado.
Pegamos nossas mochilas e seguimos o caminho de pedras até a varanda, a casa era toda de madeira e tinha vidros por toda a parte, fazendo com que quem estivesse fora visse dentro e vice e versa.
Entramos e mais uma vez ouvi Miguel murmurar algo, deslumbrado. A sala era grande, ocupada por um sofá aconchegante, um tapete de pele no chão, estante de bebidas, uma televisão e a lareira.
-Vocês mataram esse urso? _Ele indagou, pisando com a ponta do tênis no tapete.
-Admito que sou alienada com questões do mundo a maior parte do tempo, mas daí a matar um urso e colocar a pele dele na minha sala já é demais, obviamente é falsa, e precisa de uma boa varrida, a casa inteira na verdade, vou ver se encontro alguma doméstica na internet que possa vir até...
-Aqui tem vassoura e panos? _Ele me interrompeu.
-Claro.
-Então acho que podemos dar conta do recado.
-Você não vai me fazer varrer nada!
-Veremos... _Murmurou, enquanto seguia andando. -Não vai me apresentar o resto do chale?
Suspirei e contrariada, tomei a frente dele, seguindo por um corredor largo que dava para a cozinha, era espaçosa e iluminada, com grandes janelas e que davam vista para o quintal lateral do terreno. Mostrei também um dos banheiros e a varanda dos fundos, que dava diretamente para a nossa quase reserva particular, tinha churrasqueira, uma mesa comprida de madeira, e se caminhássemos mais a frente daríamos diretamente em uma cachoeira, e saber disso fez Miguel querer correr até lá imediatamente, mas acabei com a graça dele e insisti para que terminássemos de conhecer o lugar. Subimos para o segundo andar onde assim que chegava ao topo da escada já víamos um espaço amplo e iluminado, na parte de cima não tínhamos paredes de madeira, mas sim de vidro, a vista era de tirar o fôlego, montanhas e árvores para todos os lados, Miguel permanecia com a mesma expressão, maravilhado com tudo. Numa extremidade da grande saleta tinha um patamar mais alto onde lhe mostrei a jacuzi, e em uma porta à esquerda tinha mais um banheiro social, e ao lado uma porta grande escrita "sauna".
-Eu não sei mais o que esperar... _Ele murmurou, atônito.
Dei risada, achando engraçado já que eu mesma nunca tinha me dado conta do quão incrível aquela casa era, eu nem mesmo me lembrava de ter entrado naquela sauna.
Seguimos para os quartos, eram três, a suíte master onde meu pai e Roberta costumavam ficar, o meu quarto e o quarto de hóspedes, onde Miguel ficaria. Depois de deixarmos nossas coisas nos quartos, Miguel começou a varrer o andar debaixo da casa, eu tentei dar uma moral, então enquanto isso fiquei passando um pano nos móveis empoeirados.
Após uma breve faxina e de trocarmos os panos de cama, eu e Miguel estávamos exaustos, não tínhamos dormido nem cinco horas seguidas na noite passada, e aquilo já começava a nos afetar. Concordamos em tirar algumas horinhas de sono, mas quando acordei já estava escuro lá fora.
O vento frio da serra entrava com ferocidade, o que me levou a levantar e fechar a janela com pressa, apesar de frio, observei a lua no céu, estava grande e iluminada, dispensando até mesmo o uso de postes e luminárias lá fora. Já ia me afastar da janela quando algo lá embaixo, no jardim dos fundos, me chamou a atenção. Miguel estava sentado na grama e olhava para o escuro da mata ou para o céu, daquele ângulo não podia ter certeza. Ajeitei rapidamente meu rosto de sono, e escovei os dentes e arrumei o cabelo antes de descer. Ao chegar na sala observei o som ligado, tocando uma música da banda Passenger que eu não me lembrava o nome, a iluminação rústica do ambiente dava um sensação de paz e conforto que eu não sentia há muito tempo, e mais uma vez me lembrei das noites em que eu, meu pai, Roberta e Louise passávamos ali naquela sala fazendo jogos, jogos que duravam horas porque eu simplesmente não aceitava parar até que ganhasse uma partida, o que era bem difícil.
Afastei minhas lembranças e segui para os fundos da casa, abri a porta e o vento me atingiu, fazendo com que me encolhesse na hora. Ignorei a vontade de entrar e me enrolar no edredom e segui pelo gramado frio até Miguel, quando parei ao seu lado ele levantou a cabeça e acenou para que eu sentasse também. Antes de sentar observei a jaqueta que ele usava e a reconheceria em qualquer lugar:
-Bonita sua jaqueta. _Murmurei, sentando e encolhendo as pernas, as abraçando.
-E ela está sempre livrando sua pele! _Falou, e observei ele tirá-la e me oferecer.
-Não vai sentir frio?
-Eu vou, mas tenho mais tecido adiposo que você que sobrevive se alimentando de fotossíntese, vento e sorvete light.
Fiz uma careta para ele, que riu, enquanto eu colocava aquela jaqueta de couro, uma simples peça de roupa que tinha mudado toda a minha vida.
-Estou me perguntando o que teria acontecido se eu não tivesse insistido em descobrir quem era o dono dessa jaqueta.
-Eu poderia dizer que tudo seria mais fácil, eu continuaria te seguindo anonimamente e logo tudo terminaria sem mágoas, vômitos no banheiro de boate e fugas no meio da estrada de uma cidade desconhecida... mas eu estaria sendo ingênuo se dissesse isso, porque a verdade é que de alguma forma eu sei que nos conectaríamos mais cedo ou mais tarde.
-Acho que tem razão, em algum momento você seria obrigado a invadir a minha mansão e me sequestrar para salvar a minha vida. _Falei e um sorriso cansado puxou os lábios dele.
-Sim, mas teria sido interessante conhecer você sem todas as mentiras, os perigos, as omissões... _Disse, observando a mata escura à nossa frente. -Mas convenhamos, de que outro modo nos aproximaríamos? você sabe tanto quanto eu que jamais olharia para mim se nos esbarrássemos na rua.
Não pude evitar a risada.
-Eu ficaria fascinada nesses olhos em qualquer lugar do mundo. _Sussurrei, sem medir as palavras, apenas deixando que meu coração fosse completamente sincero.
Miguel me fitou com incerteza mas também com algo próximo a surpresa e ternura.
-E eu seria derrotado por esse sorriso largo e provocante mesmo se o mundo estivesse desabando sobre a minha cabeça... e odeio ter dado motivos para que esse sorriso sumisse do seu rosto, odeio ter feito você sofrer, ter machucado seu coração e quebrado a sua confiança em mim.
Não respondi imediatamente, fiquei encarando meus pés na grama, o fato de ele ter me enganado ainda doía mesmo depois de saber que ele só estava me protegendo.
-Queria poder dizer que está tudo bem, que agora que sei de tudo eu entendo o porquê das suas mentiras e omissões, mas eu não sei ser a pessoa que mente só pra fazer o outro se sentir melhor, então com toda a sinceridade do mundo eu digo que não sei como voltar a confiar em você, pelo menos não como confiava antes.
Ainda não olhava para ele quando senti sua mão tocar o meu queixo e me fazer encará-lo gentilmente.
-Não esperava menos que sua total sinceridade, mas eu preciso que saiba de algumas coisas... _Ele fez uma pausa, ponderando as próximas palavras. -Nossos beijos, o modo como nos divertíamos juntos mesmo com todos aqueles livros de administração na nossa frente, as palavras que eu disse a você naquela noite no clube, tudo, absolutamente tudo foi real, meus sentimentos sempre foram reais. Eu aceitei o cargo que seu pai me propos por dois motivos, primeiro pela minha vó, ela precisava de remédios caríssimos e eu não tinha como pagar, segundo, por mim, você sabe que eu larguei a escola cedo e em todos esses anos tudo o que mais queria era poder terminar o colegial e poder entrar numa faculdade, aceitar aquele cargo foi a chance que me apareceu. O fato é que eu imaginava que nada poderia fazer com que eu me arrependesse ou quisesse voltar atrás, mas então você se aproximou mais do que eu esperava, e eu nunca pensei que pudesse gostar de... uma patricinha riquinha, principalmente em tão pouco tempo, mas aconteceu e quando você descobriu sobre a verdade e me olhou com tanta decepção eu vi que nada mais me importava além do que eu sentia por você. E assim que eu tive a oportunidade fui até o seu pai e implorei para largar o cargo, e estava tão óbvio os meus motivos, não precisei ser muito claro para que ele logo soubesse o porquê deu querer abandonar o trabalho e...
-Espera aí, você contou para o meu pai sobre a gente? _Indaguei, surpresa e tensa, meu pai nunca tinha apoiado nenhum dos garotos com quem eu me relacionei.
-Eu... mais ou menos, ele me perguntou e então eu apenas admiti que estava apaixonado por você.
As palavras se perderam no ar, fiquei o encarando por alguns segundos absorvendo aquilo.
-Se não trabalha mais para o meu pai o que está fazendo aqui? _Perguntei, ignorando por um momento as palavras dele, antes de me declarar para ele outra vez, queria saber sobre absolutamente tudo.
Miguel bufou, e me olhou como se eu fosse o ser mais estúpido da face da terra.
-Catarina, você não ouviu nada do que acabei de dizer? eu estou aqui por você, seu pai confiou sua vida a mim, e sabendo do perigo que você corre eu jamais viraria as costas, tudo o que eu fiz desde que começamos a nos envolver foi por você! De repente os remédios e o meu diploma não eram mais tão importantes, eu conseguiria eles de outra forma, mas se eu perdesse você, o que eu faria?! _Ele disse, sem desviar os olhos dos meus. -Eu quero muito ter você outra vez, se é que eu tive um dia... eu meio que estraguei tudo antes mesmo de começar.
Senti a garoa fina cair sobre a gente, eu não tinha dúvida alguma do que Miguel sentia por mim, na verdade, no fundo eu nunca duvidei, mas ainda sentia a insegurança tomando conta de mim, meu instinto de defesa ainda estava ali, me impedindo de retribuir aquelas palavras.
-Está começando a chover, é melhor entrarmos... e eu também estou morrendo de fome!
Miguel afastou as mãos devagar e seu olhar levemente decepcionado vagou rapidamente pelo céu, até se levantar e estender a mão para mim. Quando entramos na casa fomos direto para cozinha, Miguel já tinha deixado uma bandeja preparada com tudo que havíamos comprado na loja de produtos locais na estrada. Enquanto ele levava a bandeja para a sala, peguei o vinho e lavei duas taças empoeiradas. A chuva corria na janela e o vento cantava lá fora, quase como se quisesse nos contar algo. Depois que Miguel apoiou a bandeja na mesinha de centro, puxei a manta do sofá para o tapete, peguei algumas almofadas e sentamos no chão, de frente para a lareira, que já trepidava.
Comemos e bebemos enquanto ouvíamos música e conversávamos sobre os dias que passamos longe, geralmente colocavámos o assunto em dia sempre que as aulas de administração terminavam, e tanto eu quanto Miguel tínhamos sentido falta daquelas conversas despretensiosas.
  Já era madrugada, eu e Miguel estávamos deitados sobre o tapete, em silêncio, apenas a música baixa, nossas respirações ritmadas e o som da chuva preenchia o ambiente. Ele estava tão perto, eu sentia falta de tocá-lo quase como uma necessidade, chegava a se doloroso tê-lo a centímetros de distância e não poder separar o espaço entre nós. E eu não aguentava mais aquela dor.
-Precisará reconquistar a minha confiança. _Sussurrei, e senti ele se mexer e virar a cabeça para mim.
-Como é?
-Eu também quero ter você de volta, mas vamos precisar arrumar um jeito de reconstruir a confiança que perdemos. _Esclareci.
Ele se apoiou nos cotovelos para me olhar:
-Eu prometo que tornarei um exercício diário provar a você que pode confiar em mim... _Ele declarou, sorrindo. -Então você vai me dar outra chance mesmo?
Não sabia se ele tinha mais alguma coisa a dizer, e nem esperei para descobrir, passei minha mão em volta do pescoço dele e o puxei para um beijo. A sensação era como se eu estivesse em um quarto escuro e frio durante essas últimas semanas, e agora tudo estava claro e aquecido outra vez, como tinha que ser.
-Isso responde a sua pergunta?

Aquela jaqueta de couroOnde histórias criam vida. Descubra agora