O enterro da menina

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Narrador

Existe no mundo uma infinita quantidade de histórias e, não tão tarde, você descobre que algumas dessas histórias jamais deveriam ter sido contadas. Esta não é uma delas. Esta é uma daquelas histórias que você guarda para a vida, uma história que se lembrará daqui a alguns anos enquanto se deita para dormir ou enquanto se senta no jardim de algum lugar. Algumas histórias precisam ser contadas, mas preciso avisar que esta não é uma história de terror.

Em uma tarde de sábado, Miguel saiu para o jardim como fazia todos os dias. Das 15h até as 18h, o jardim era seu lugar favorito. Ele amava como o perfume das flores que a vizinha cultivava chegava ao seu jardim, trazido pelo vento que sempre cercava a região. Amava como o balanço velho, que veio com a casa, era forte o suficiente para levá-lo até o céu e amava as histórias que Angela lhe contava. Angela era sua melhor amiga; ela possuía cabelos longos e pretos, uma pele branca e olhos vivos e verdes. Miguel amava aqueles olhos, mesmo achando que eles sempre pareciam tristes, mesmo quando ela sorria.

Angela era sua amiga desde o dia em que ele se mudou. Ele não sabia exatamente em qual das casas vizinhas ela morava, mas sabia que, assim como ele, ela amava jardins. Naquela tarde, assim como todas as outras, Miguel sentou-se ao lado de Angela de frente para a árvore que ficava dentro do jardim, que sempre trazia sombra nos dias de piquenique. Angela estava sentada ao lado de Miguel, que, apesar de seus recém-completos 10 anos, já era alto o suficiente para manter um contato visual direto com Angela, assim como os adultos faziam.

— Hoje é um dia especial para mim — disse Angela, com um sorriso meigo e um pouco triste. — Sério? Por quê? — perguntou Miguel, com um tom de voz mais curioso que o normal. — Preciso lhe contar uma história, para que você entenda por que hoje o dia é importante. Quer ouvir uma outra história hoje? — disse Angela, sorrindo de forma materna, como sempre fazia.

Logo, Miguel se ajeitou, tirando as costas da árvore e cruzando as pernas, mostrando total atenção. As histórias que Angela contava eram sempre muito boas, sempre sobre aventuras de outras crianças e sobre viajantes que causavam problemas. Angela suspirou de forma pesada, sorriu e começou sua história.

Angela

A história começa em um funeral. Funerais nunca são felizes, você já deve saber, ou pelo menos não deveriam ser. Aquele, em particular, era muito triste para toda a cidade, já que o corpo imóvel do caixão era de uma garotinha, não muito mais nova que você agora. O nome dela era Hipátia, assim como a filósofa grega. Era um nome incomum para a época, mas o pai dela era professor e achou que seria um nome único, principalmente porque sua mãe tinha um nome que também era grego. Apesar do seu apego pelo nome, quase ninguém a chamava assim; para todos, aquela pequena jovem de 7 anos era apenas a Til.

— Você acha que ela está em paz? — perguntou Cássia, a vizinha que morava ao lado. — Ela é só uma criança, todas elas vão em paz — respondeu seu marido. — Eu sei, é só que, quando as pessoas morrem, elas precisam saber o que aconteceu, não é? Quer dizer... a forma como essa menina morreu, e se ela ficar confusa no outro plano? E se ela ficar confusa e, por isso, não conseguir sair desse e ficar vagando? — Cássia, por favor. É o funeral de uma bebê. E se a mãe escuta? — respondeu bravo às insinuações da esposa sobre a jovem criança. — Chega, falamos de qualquer coisa em casa, ok? — encerrou o marido, puxando a esposa para longe do caixão.

Til era tão pequena para sua idade que dizer que ela não passava dos 5 seria muito fácil. Ela era branca como a neve e tinha olhos puxados e verdes. A mãe se aproximou do caixão, ainda entorpecida pela visão da sua única filha deitada com seu vestido de flores favorito. Ao lado, seu padrasto chorava em silêncio, tentando ser forte para sua esposa. Mesmo que a garotinha ali deitada fosse a pessoa que ele mais amara no mundo, ele tentava ser o suporte para sua amada esposa e mãe da menina. A mãe se chamava Dê, apelido de Demeter, e o padrasto se chamava José. O pai de Til tinha morrido muito cedo, antes mesmo da menina completar 1 ano, e quando Til tinha 3, Dê já estava há dois anos em um grupo de apoio para pessoas viúvas. Foi lá que ela conheceu José, um homem que, há um ano, tinha perdido sua esposa em um acidente de carro. Logo Dê e José se apaixonaram, e não demorou muito para que ele passasse a amar Til também, assim como amaria se fosse sua filha. Ele tinha assumido o papel de pai, e nesse quesito ele era o melhor do mundo aos olhos de Til. Levava a garotinha para o jardim toda tarde para ler histórias. Eles tinham a noite da cozinha, em que os dois bolavam algum prato especial para a mãe, e quando Til completou 6 anos, ele deu para ela de aniversário o melhor presente que a garota já havia recebido: um cachorrinho branco com as pernas curtas. O padrasto dizia que era porque Til também era muito pequena, o que sempre fazia ela torcer o nariz para ele e fazer cara feia de repreensão por zombar da sua altura.

Crisântemo Branco ( conto)Onde histórias criam vida. Descubra agora