→Único.

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Tirou os tênis e sentou no canto de seu quarto. As pernas ainda um pouco trêmulas por conta das muitas horas de ensaio.

A música ainda tocava em seus fones, movia o pescoço lentamente pela tensão acumulada na região e esticava os braços.

Pegou seu celular e parou a música, logo levantando-se e caminhando até o banheiro.

Tirou suas roupas e olhou-se no espelho. Vendo a cicatriz em sua coxa, se lembrou do dia em que seu irmão mais velho  chegou bêbado em casa e lhe agrediu com um pedaço de vidro quebrado da garrafa que havia arremessado na parede. Tinha levado alguns pontos aquele dia.

Abaixou-se até o pequeno armário do banheiro e pegou uma das lâminas que estava ali. Não se orgulhava delas, mas não ligava, já não se orgulhava de nada há um bom tempo.

Dirigiu-se até o chuveiro e o ligou. A água quente relaxando seus músculos e o vapor aquecendo seu rosto.

Logo bateu as costas na parede branca fria e sentiu os primeiros soluços de mais uma crise de choro, seguidos das lágrimas quentes correndo por suas bochechas.

A garganta queimando feito brasa, os olhos ardendo, pernas e mãos trêmulas, o peito doendo pelo esforço de tentar não fazer muito barulho com os soluços para não acordar sua mãe, que provavelmente agora estava dormindo por conta das dores de cabeça constantes.

Fechou fortemente os olhos e segurou a lâmina em sua mão com mais firmeza, e minutos depois via o seu sangue deslizando pelo chão branco junto com a água indo em direção ao ralo.

Lembrava-se claramente de seu avô lhe dizendo que ia para o inferno porque beijar outra garota era pecado, que era uma vergonha para a família e que se morresse de desgosto a culpa seria dela.

Também lembrava de seu tio drogado, de suas mãos grandes e sujas percorrendo seu corpo e da dor que sentiu. Tanto física quanto emocional.

Céus, tinha apenas quinze anos.

Encarou o objeto cortante que segurava e apenas pensou em enfia-lo fundo em seu pulso e acabar com toda aquela dor, mas não podia. Tinha que estar viva para  poder colocar um sorriso -falso- no rosto e cuidar de seu primo, deuses, como amava aquele garotinho. O único que não lhe julgava, que não via maldade nenhuma em nada no mundo e que lhe olhava como se fosse sua heroína.

Via a admiração no olhar do pequeno depois que lhe ajudava na lição de casa e ele achava que ela era super inteligente mesmo tendo apenas lhe dito o nome certo da forma geométrica no livro. Ou quando pegava algo que ele não alcançava por sua pouca altura e ele dizia que queria ser grande e forte como ela quando crescesse.

Ela sempre dava uma singela risada e lhe dizia que não era tão forte quanto parecia.

Ele nunca havia lhe visto chorar, para ele ela era como uma deusa que sempre estava ali para lhe ajudar e brincar consigo.

Precisava estar viva por ele.

Precisava estar viva por sua mãe doente.

Precisava estar viva por sua professora e colegas da aula de dança, elas lhe admiravam por quase nunca errar um passo sequer e a professora gostava de lhe pedir ajuda para ensinar as mais novas.

O assédio que sofria era algo frequente. Seja pelo diretor da academia, por seu professor de matemática na escola ou por seu tio. Lhe diziam que tinha um corpo bonito, digno de uma dançarina profissional.

Mas suas colegas não sabiam que não errava por passar madrugadas inteiras dançando por não conseguir dormir. A dança sempre foi seu refúgio.

Há alguns meses tinha sua melhor amiga para desabafar. Ela era a melhor pessoa que poderia ter conhecido na vida. Porém o universo não concordava em lhe ver feliz, tanto que fez sua tão amada amiga ser atropelada um dia saindo da academia de dança. A garota acabou não resistindo, havia perdido muito sangue e os machucados foram graves.

Desde então não teve mais ajuda em suas crises, cada dia a vontade de morrer aumentava e já estava chegando a um extremo.

Seu pai, bem, não se surpreenderia se ele não lembrasse o dia de seu aniversário. Ele se recusava a lhe levar num psicólogo por achar que seria dinheiro jogado fora, isso era tudo um drama de adolescente e essa fase já passaria.

Mas não era uma fase.

Isso nunca passou.

Não deu tempo de passar.

Sua filha morreu antes disso.

Not A PhaseOnde histórias criam vida. Descubra agora