XVIII - Educação sempre

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 Não foi difícil encontrar o arqueiro.

 Na verdade, ele agia como se quisesse ser perseguido. Durante a fuga teve mais de uma oportunidade de atingir Felia e atrasar seus movimentos para escapar, mas insistia em correr e atirar flechas quase aleatoriamente.

 "Uma armadilha." Concluiu a princesa. "Devo matá-lo antes de chegarmos ao destino final."

 Ela invocou duas lâminas do seu cinturão e atirou na direção do arqueiro que destruiu a primeira com um disparo do arco e desviou-se da segunda. Invocou mais lâminas, mas o arqueiro acelerou o passo. Ela não podia atira-las de qualquer maneira. Precisava se aproximar um pouco mais antes de tentar novamente.

 - Quanta determinação. - Gritou o arqueiro sobre os ombros a sorrir. - Gosto disso! Espero que você seja tão determinada quanto parece. Não quero que nossa diversão acabe depressa."

 - A diversão vai acabar quando eu perfurar o seu coração. - Ela gritou enquanto tomava impulso para um salto mais longo.

 Infelizmente, enquanto ela estava no ar, o arqueiro virou-se e atirou uma flecha. Felia tentou se proteger, mas o impacto e a explosão foram mais poderosos do que os anteriores. As laminas que usara para bloquear o ataque se despedaçaram e ela caiu de uma altura considerável. Com os ouvidos zunindo, girou o corpo e se preparou para rolar quando atingisse o chão na esperança de amortecer a queda.

 Ela conseguiu executar a manobra, mas suas pernas arderam em protesto. Seus braços tremiam levemente, como se vibrassem, após bloquear a flecha explosiva. Felia conseguia se mexer, mas já não estava tão confiante.

 - Droga!

 Foi estupidez baixar a guarda durante o salto. Ficou vulnerável, impossibilitada de desviar. Também, estava tão habituada a perseguir e atacar que não pensara que precisaria se proteger. Ao invocar as lâminas, concentrara-se apenas em uma arma para ser atirada. Não esperava ter de usa-las para aparar um golpe tão poderoso.

 - Ah! - Suspirou o arqueiro do alto do telhado. - É sempre assim. Justo quando a diversão começa meus brinquedos quebram.

 Felia invocou novas lâminas. Desta vez, lâminas um pouco maiores do que as habituais e mais resistentes.

 - Se é isso o que você acredita, desça daí e venha ver de perto o que eu ainda sou capaz de fazer. - Vociferou a princesa se preparando para o combate corpo a corpo.

- Não, obrigado! - Gritou o arqueiro zombeteiramente. - Diferente de pessoas apressadas como você, não tomo decisões estupidas quando provocado.

Felia mordeu os lábios.

- Agora, seja uma boa garota e deixe-me terminar o meu trabalho. Me entregue a relíquia e não terei de matá-la também.

 O arqueiro preparou-se para atirar uma flecha. Felia tentou se acalmar. O pedido do arqueiro para que ela se rendesse significava que ele estava próximo de seu limite.

- Não, obrigada. - Respondeu devolvendo o sorriso zombeteiro.

 O sorriso no rosto do arqueiro desapareceu.

 - Que assim seja.

A flecha foi disparada. Diferente da primeira vez, agora Felia estava preparada. Com as láminas cruzadas, elas aparou o ataque e o desviou para cima. Seus braços vibraram como momentos antes, mas não ouve qualquer dano.

O arqueiro a encarava surpreso.

 - Quem é você? - Perguntou enquanto preparava outra flecha.

 - Chegue mais perto e tente descobrir se for capaz. - Respondeu Felia se preparando para bloquear o próximo golpe.

 O som de um apito alto e longo cortou o ar. Sombras começaram a surgir no fim da rua.

 - A guarda... - Disse o arqueiro entre os dentes. - Você está com sorte garota. - Depois sua feição mudou e ele abriu um largo sorriso. - Nos encontraremos novamente e então tomarei a relíquia e a sua vida.

 Ele se afastou da borda do telhado, desaparecendo da vista de Felia.

 Os apitos soavam mais próximos. Felia olhou para o telhado mais uma vez. O sentimento que tinha no peito desde que se aproximara do arqueiro na praça começava a desaparecer.

 - Ele se foi. - Concluiu.

 Ela precisava fazer o mesmo. Suas pernas não haviam se recuperado o suficiente para saltar pelos telhados. Decidiu fugir correndo pelos becos.

 Toda aquela perseguição e combate deixaram-na exausta como não se sentia há anos. Parecia que sua energia havia sido drenada. A única coisa boa de toda aquela situação era o fato da voz em sua cabeça ter se calado e o frio que sentia desaparecera por completo. Sem o principal motivo para assassinar alguém e nem um pouco a fim de continuar na chuva, Felia seguiu de volta para o castelo.

 Em seu quarto, guardou o cinturão no baú ao pé da cama e pendurou o traje em uma arara no canto para escorrer a agua da chuva. Chamou uma empregada e ordenou que lhe preparasse um banho com agua morna. Enquanto esperava ponderou sobre tudo o que ocorreu naquela noite.

 Pensou no guarda que sobreviveu ao ataque do arqueiro. Depois de ela própria ser atingida por uma das flechas, sua duvida sobre o que vira no beco começava a se desfazer. Seria impossível para uma pessoa comum usando uma arma qualquer sobreviver a um golpe como aquele.

 Também pensou em como suas lâminas não causaram danos ao arqueiro. Olhou para as roupas penduradas na arara. Eram roupas escuras normais, apenas para facilitar a movimentação sem ser percebida ou reconhecida. Se fosse ela no lugar do arqueiro seu corpo estaria cheio de cortes agora. Precisava de um traje novo, mais resistente, se quisesse enfrentar a outros portadores de relíquias.

 Por fim, pensou nos efeitos colaterais de usar uma relíquia.

 Após anos como portadora do cinturão, aprendeu muitas coisas por conta própria. Sua relíquia de tempos em tempos pedia por 'sacrifícios'. Depois de alguns testes, Felia chegou à conclusão de que se tratava especificamente de matar pessoas. No geral, uma morte bastava. Depois de assassinar alguém, uma onda de euforia e poder percorria por todo o seu corpo. Embora isso parecesse um convite para continuar matando, quando Felia precisou enfrentar e assassinar mais de um inimigo seus pensamentos se tornaram turvos e a voz que deveria desaparecer se tornou tão alta e clara que parecia sair de sua própria boca, clamando por mais derramamento de sangue. Depois dessa experiência levou dias para que ela se sentisse livre por completo da influencia da relíquia. Isso a levou a crer que havia um limite de assassinatos que podiam ser cometidos antes do portador da relíquia perder o controle.

 O pedido do arqueiro para que ela entregasse a relíquia sem precisar ser morta significava que ele já havia matado mais de uma pessoa naquela noite. Ele estava próximo do limite. Por isso seus ataques eram tão poderosos e ainda assim ele evitava atacá-la diretamente. Não queria arriscar.

 - Senhora, o banho está pronto. - Disse a empregada tirando Felia do seu turbilhão de pensamentos.

 - Obrigada Martha. E pelo incomodo que causei tão tarde da noite pode tirar o dia de folga amanhã.

 Martha a encarou surpresa.

- Pode ir agora. - Completou.

- Sim. Obrigada, princesa! - Agradeceu fazendo uma reverencia e saindo apressadamente do quarto.

 Felia estava de bom humor. Pela primeira vez esteve em contato com outro portador de relíquia. Também suspeitava que um dos guardas da zona leste fosse um portador de relíquia. Saber destas coisas de alguma forma parecia tornar possível o seu sonho de destruir a maldição da sua família. Talvez porque agora que ela tinha certeza da existência de outros como ela, tudo parecesse muito mais real e não apenas um conto como os que sua mãe lhe contava antes de ir para a cama quando criança.

 Ela entrou na banheira e relaxou. Seus pensamentos divagaram. Deixou-se levar pelo calor aconchegante da agua morna e alegrou-se por não precisar limpar o sangue de ninguém do seu corpo.

Quando terminou o banho e se preparou para dormir já havia chegado a uma conclusão. De tudo o que faria no dia seguinte, uma coisa era mais do que certa. Tiraria um tempo para encontrar alguém capaz de lhe preparar um traje de combate ideal e já tinha em mente quem poderia ser a pessoa mais adequada para o trabalho.

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