Onde Habita o desejo

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Sentei-me à mesa junto à janela. Mesa singela para dois. Fechei o jornal no smartphone e deixei-me entregue a garoa de fora. O gotejar tocava com delicadeza a janela e desenhava no vidro vagarosamente. O chiar suave e monótono logo foi preenchido pelo barulho das calhas cheias de água esparramando na calçada. Do chuvisco tímido de lágrimas poucas, logo veio forte e imparcial chuva que tempestuosa sibila afora.

Eram quatro e três da tarde. Meu peito apertava ansioso, meus olhos corriam pela rua buscando em cada o rosto aquela que deixava-me indouto. Atrasos eram de seu feitio, apenas mais uma de suas muitas manias. No entanto, todas as vezes desesperava-me pensar que ela não viria, ou mesmo imaginar não vê-la nunca mais. A simples fantasia de meu coração inseguro vendo-a seguir entre inúmeras pessoas, sumindo entre a rua, seguindo seu destino longe do meu, tudo isso provoca-me dor.

E ali, perdido em fantasias melancólicas ela veio. Caminhava firme, com olhos curiosos para tudo. Era de sua natureza parar e admirar o caminho, o que justificava seus modestos atrasos. Estava com um vestido preto longo, um chapéu e um guarda-chuva. Destoava do colorido dos outdoors e das roupas chamativas de todos que a rondavam. Era um contraste com tudo que chamava a atenção. Andava sem preocupar-se com o mundo em sua volta, no entanto, ainda o admirava muito. Ela percebia o mundo, e por isso, o mundo também a percebia. E isso a tornava única na multidão.

Abriu a porta lentamente e por alguns instantes procurou-me. Um alívio veio sobre meu corpo, meu coração encheu-se, e com um olhar minha melancolia tornou-se poesia.

_ Demorei? – perguntou-me sentando-se a mesa comigo.

_ O suficiente, nada mais.

Um sorriso apareceu em seu rosto, singelo, efêmero, esculpido. O mesmo sorriso que outrora tirou-me da insanidade do ordinário, da vida vazia e sem sentido. Nos encontramos todas as quartas feiras há dois meses. E faz dois meses que meu mundo monocromático ganhou cores alegres e quentes.

Na tarde em que a conheci estava em uma ponte sentado na beirada. Olhava o fluxo dos numerosos carros na estrada. Um horizonte cinza em um crepúsculo de cores pálidas chamava-me. Um convite ao fim de uma vida sem sentido, repetitiva de insanidade. Respiraria e contaria até dez, e nada mais haveria, nada de palavras vazias, mentiras, sorrisos falsos. Contei um, dois, três, quatro... e ela estava ali sentada ao meu lado. Com seu sorriso modesto e sincero fez-me outro convite, um que agarrei com desespero.

_ Um mundo tão belo e cheio de cores, aromas e sensações, e ainda assim tem quem queira deixa-lo por nada? - Uma simples indagação que me calou para tudo. E por alguns instantes decidi parar e ouvir.

_ Beleza... É tão passageira e relativa quanto as nuvens no céu. Agarrar-se a tal conceito é estupidez. – A revolta cegava-me, estava preso a meu próprio mundo de insanidades que não podia ver a realidade que me cercava.

_ Ah é? Estupidez – disse ela em tom sarcástico. – Se eu provar que existe beleza aqui e agora promete-me algo que não possa voltar atrás?

_ Como o que? Sair da ponte e não voltar mais aqui?

_ Meu caro, não voltarás mais aqui, não com tal intento. Prometo.

Então sem mais o que perder aceitei.

_ O que há de belo então?

_ Ali – disse ela apontando para as nuvens – consegue dizer-me se já viu outra igual?

_ Te disse que é estupidez, o mesmo céu com nuvens passageiras.

_ Ah sim, mas perguntei se viu outra igual? Disse que é passageira, de fato é. Um dia nunca será igual a outro, assim como uma nuvem jamais será igual outra. Sabe, o crepúsculo é um momento tão mágico e poético. Há quem não acredite, ou pense que é uma total estupidez, no entanto, eu creio que é algo especial.

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⏰ Última atualização: Nov 11, 2020 ⏰

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Onde Habita o Desejo (em revisão)Onde histórias criam vida. Descubra agora