O Caso de Meg Anderson

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– …Doutor, temo que a vida de minha filha esteja em risco.
O velho acadêmico ajeitou-se em sua poltrona, cruzando ligeiramente as pernas, baforando um pouco do charuto que punha e tirava da boca a certos intervalos.
– Você sabe que não foi ideia das mais sensatas buscar apoio em um parapsicólogo, não é?
– Sim, doutor… - Dizia o pai, preocupado. Inclinou-se de seu assento para mais perto do velho. - …mas é justamente o porquê de eu buscar ajuda com o senhor, e não com qualquer sorte de alienista. Colocariam minha querida Meg num sanatório, e estremeço só de pensar nas crueldades desumanas que poderiam acometê-la em tal ambiente.
O Dr. Bauer assentiu, como que compreendendo o ponto de vista do pai, e lhe garantiu que não seria vã a sua procura pela melhora da filha.
– Diga-me: o que deixa a garota histérica?
– Bem, digamos que ela tem tomado muito do nosso sono. Permanece perambulando pela casa à noite, como que sonâmbula. Às vezes fala sozinha…
– Disso eu já estou ciente, cavalheiro, como já me fora relatado. Necessito saber o que, em especial, a torna histérica, a torna incontrolável, selvática e violenta!
O pai sentiu a dureza daquelas palavras, que o faziam relembrar cada momento com sua filha enferma, e cada ataque que lhe surtia sempre que…
– …tomando a luz do sol da tarde, ou mesmo a presença da luz de lampiões muito fortes. É como se ela os detestasse! Ainda mais, temo que ela tenha desenvolvido alguma patologia dermatológica: sua pele é branca, mais do que de costume. Não uma candura bela, mas algo cadavérico e assombroso. Veja bem, meu senhor, a garota tem apenas dezesseis anos e se comporta como uma velha demente!
O velho professor sentia o peso no relato do pai, e por ele nutria certa simpatia; pela garota, compaixão. Em virtude destes nobres sentimentos decidiu ajudar, de bom grado, a família sofredora.
O Doutor Bauer saiu juntamente com o pai da garota enferma, e logo à porta lhes esperava um coche, no qual entraram e, durante muito do percurso, discutiam brevemente a respeito do estado da garota.
Segundo o relato do pai, tudo começou num dia calmo de primavera.
A garota colhia flores no quintal da família, e seus pais preparavam um pequeno almoço ao ar livre. Nada fora do ordinário ocorrera naquele dia, se não pelo corte leve que a garota teve no polegar esquerdo, dados os espinhos da roseira da qual colhia flores para sua guirlanda. Tudo transcorreu bem naquele início de tarde.
– Quando veio a noite - Continuou o pai -, pude notar que Meg havia deixado a janela do quarto aberta  a fim de que tivesse o ambiente mais arejado, dado o calor do dia passado. Vi-a deitada em seu leito, com as mãos sob o peito. Uma pequena mancha de sangue maculava sua camisola branca já que deitava o corte sobre a roupa a fim de estancar o sangue. Disso fiz pouco caso, pois poderiamos simplesmente lavá-la ao amanhecer.
"Quando me dirigi ao meu quarto, pareceu-me ouvir um ruido sobre as telhas, um caminhar sorrateiro que atribuí a algum animal da vizinhança, ratos no sótão ou minha pura imaginação. A despeito disso, naquela noite, todos dormimos tranquilos."
"No dia seguinte ao ocorrido, lembro-me de ter tido com minha filha. Fui para seu quarto, e lá a encontrei, desperta, observando pela janela o horizonte à sua frente. "Um dia isso tudo te pertencerá", foi o que eu disse, em tom de gracejo. Entenda, meu senhor, que minha filha sempre foi o mundo para mim!"
"Ela parecia absorta em devaneios que sequer se apercebeu do que eu dissera. Voltando-se para mim, contudo, tive um grande susto: sua camisa estava ainda mais maculada pelo sangue, e sua fisionomia aparentava rigidez e tristeza. Movimentava-se pesarosa, e caminhando em minha direção, balbuciava algo que eu falhava em compreender. Ainda hoje tenho memórias deste dia como sendo o último dia em que ela me dirigiu a palavra. No longo período de seis meses até agora, ela tem apresentado sinais de delírio, violência e nos olha de forma possessa e furiosa. Quase não tem comido, se não pelos pratos com carne que sua mãe lhe prepara. Certa vez a impedi de saltar sobre uma gorda ratazana que se perdera em seu quarto. Podia jurar que estivesse prestes a devorá-la, e quando não lhe-lo permiti, pareceu devorar-me com os olhos, possessos e enfurecidos."
"Certa feita, meu irmão veio nos prestar visita. Era caixeiro viajante e provinha da Boêmia, donde trazia inúmeras lembranças daquele rico país. Uma das quais foi um relógio de bolso extremamente ornamentado, cujo tiquetaquear constante nos deixava extremamente irritados, mas aparentemente acalmava os animos dela. Decidi, então, dá-lho-la, e desde então ou está a caçar bichos pela casa, ou está recôndita em seu quarto, sentada em um dos cantos, com o relógio que tiquetaqueia sem parar."
Chegaram enfim à mansão dos Anderson. A casa tinha por modelo arquitetônico o estilo Tudor, cercada por um jardim de cerca viva e inúmeros girassóis e roseiras. O caminho de cascalho que levava à porta principal era um pouco estreito, mas comportava ao menos duas pessoas andando lado a lado. A grama ao redor aparentava descuido, e já crescia bem acima das solas dos sapatos dos que vinham pelo caminho das pedras. O Sr. Anderson disse que costumavam ter um jardineiro, mas que o mesmo pediu demissão, assustado com o jeito com que Meg o observava da janela enquanto podava e cuidava das roseiras.
Chegando enfim à porta, a mulher pediu que ambos entrassem prontamente. Era tarde e o sol estava prestes a se pôr. Era o horário em que Meg ficava mais agitada, segundo o Sr. Anderson, e sempre deixavam todas as portas fechadas a esse ponto.
A Sra. Anderson encaminhou o Dr. Bauer e seu marido para a sala de visitas, onde sentaram-se como num meio círculo nos sofás e divãs que lá haviam. Foi naquele mesmo instante que ouviam um chiado incessante e perturbador vindo do andar de cima, seguido de uivos secos e gargarejos, sons guturais que me custam descrever com palavras. Naquele momento, o pai fitava o Doutor e a mulher, e esta, silenciosa, encobria o rosto nas mãos, apoiando os cotovelos nas pernas, envergonhada e desesperançosa. Houve alguns sons de baques contra uma parede sólida, e num átimo, tudo cessou.
O Sr. Anderson fez sinal de que iria dizer algo, mas foi interrompido pelo pedido de silêncio do Doutor, que queria averiguar o estado das coisas. Perguntou, a sotto voce, onde se encontrava o quarto da menina. "No andar de cima, logo à direita da janela da frente", murmurou a mulher.
Ele caminhou cautelosamente escadaria acima, ouvindo apenas o canto das gralhas noturnas que sobrevoavam em bando a casa de campo, e os grilos que davam início à sua orquestra noturna.
Caminhou até a janela da frente, se atentando à porta, mas olhando além do vidro: via o sol se despedir, um rei que falecia, apenas para que pudesse renascer novamente no dia seguinte, deixando seu reino nas mãos da Rainha da Noite, que rege o inconsciente e misterioso, o mundo dos mortos e das almas perdidas, que dançam no Hades e nas casas dos tolos.
De súbito, ouviu um barulho seco, um tombo suave, como alguém que se prostra sobre o chão de madeira, mas abafado, talvez por um cobertor ou tapete. Tencionava ignorá-lo, não fosse pelo barulho do tiquetaquear incessante que começava a ouvir.
Olhou para a porta à sua frente. Fechada, mas desconhecia se estivesse trancada ou não. Não gostaria de descobrir a verdade; no entanto, como lhe era incumbido o dever de averiguar a situação, deu três toques na porta, sem obter resposta, apenas o tiquetaquear do relógio.
Chamou-a pelo nome, e não lhe respondia. Aguardou; pensou em abrir a porta, mas temia que isso só causasse à garota mais mal do que bem. Não queria pegá-la de surpresa e acentuar seus humores. Decidiu que era hora de retornar à sala de visitas, e conversar melhor com o pai e a mãe da garota.
Ao se virar para seguir o caminho em direção a escada, teve um sobressalto: à sua frente, uma espécime de gato selvagem severamente eviscerado, com os olhos saindo das órbitas, mas nenhum sangue à vista. Cubrindo a boca para não vomitar, o parapsicólogo foi levado por impulso próprio contra a parede, e fechou os olhos até poder se recompor. Quando enfim sentiu-se menos aterrorizado, aproximou-se do animal, a fim de constatar o que diabos lhe ocorrera, e descobriu-o sem os rins e estômago, com os pulmões estufados e as costelas quebradas. O coração parecia parcialmente abocanhado por algo que não poderia ser em sonhos uma boca humana! Aquilo tudo o deixou ainda mais perturbado, e evitando pisar no cadaver do animal à sua frente, foi em direção às escadarias, descendo-as rapidamente para dar de encontro com o Sr. e a Sra. Anderson, que o contemplavam com olhos tristes mas esperançosos. A feição no rosto dele traiu a confiança do casal, que parecia ainda mais desnorteado do que de costume.
- O que foi desta vez? - Perguntou a mulher, visivelmente preocupada.
- Um gato selvagem.
- Céus! Eles estão ficando cada vez maiores! - Disse, a ponto de lágrimas.
O Doutor requeriu uma explicação e a mulher lhe revelou que ao longo do tempo destes ultimos seis meses, as "presas" que Meg buscavam estavam ficando cada vez maiores. Ela primeiro caçava insetos e ratos, mas depois começou a se interessar pelos pássaros que seus pais criavam em gaiolas no salão dos fundos, onde a escuridão lhe permitia livre movimento. Temendo que a filha desenvolvesse alguma compulsão alimentar nada saudável e, para dizer o mínimo, doentia, eles venderam as gaiolas com seus pássaros para o tio que viera alguns meses atrás. Como Meg se infurecera com a decisão, buscaram recompensá-la com algo, e foi aí que o tio lhe presenteou com o relógio, o que de fato aplacou seus instintos animalescos. Mas por quanto tempo?
O Dr. Bauer, visivelmente perturbado, tirou da mochila uma caderneta e começou a folhear seus rabiscos prévios. Quiça já houvesse se deparado com algo daquela sorte anteriormente? Ele cria que não, mas ainda lhe restava a esperança de que poderia resolver aquele caso.
A mãe foi para a cozinha, mais para esconder o choro do que qualquer outra coisa. Não se sentia à vontade na frente do Doutor. O Sr. Anderson permaneceu, não menos abalado, e acolheu às palavras do Doutor, que dizia:
- Deve-se tomar todo o cuidado para que sua filha não saia desta casa. Veja: eu tenho contatos em Roma que podem nos ajudar com esta situação. Só precisaremos de tempo e mantermo-nos fortes enquanto isso tudo…
Teve, de repente, sua fala cortada por um leve ranger de porta, uma distante e estridente risada, destas que fazem as portas de madeira com dobradiças gastas. Logo, seguido de rápidos passos pelo assoalho acima, ouviu-se o grito da Sra. Anderson, um vidro espatifado no chão e um rugido desumano, vindos da cozinha.
O Doutor e o Sr. Anderson foram rapidamente averiguar a situação, mas ante a porta que levava à cozinha, sentiram uma presença que lhes impedia de passar, como que uma sombra: era noite, mas a cozinha estava mais escura do que de costume, e as trevas densas eram quase como sólidas.
Ao tentar adentrar naquele volumose breu, o Doutor sentiu-se como que debaixo d'água. Seus movimentos eram lentos e ele não enxergava muito bem à sua frente. Sua respiração ofegante era de um esforço tremendo. Era como se a noite quisesse sufocá-lo, com mãos gélidas e cadavéricas. Quando, enfim, acendeu um fósforo para ver o que se passava, as trevas desapareceram. Foi como se fugissem ao menor sinal da moralidade que impunha aquela luz de fósforo sobre seu corpo blásfemo. Lá, caída ao chão, viu a Sra. Anderson, com os olhos esbugalhados, a feição perturbada e o maxilar levemente torto. Em seu pescoço, um buraco abocanhado por algo que decerto não era humano, e sequer poderia ser terreno. Aterrorizado, gritou pelo Sr. Anderson, que cria logo atrás de si. Ele não respondeu.
Com o que lhe restava de coragem, aproximou-se do cadáver da mulher, e percebeu que seu corpo parecia seco, como que morto há dias. Pálido e murcho, a expressão em sua face se tornava cada vez mais contorcida, e o brilho dos olhos tornara-se de uma coloração leitosa, refletindo tão somente a luz exterior, pois a interior se apagara num súbito momento de terror e desespero.
- Sr. Anderson! - Ele gritava - Precisamos fechar todas as portas da casa! Ela não pode sair daqui em ocasião alguma!
Ouviu, então, a porta de entrada se fechar, num estrondo. De sobressalto, pôs-se novamente de pé, já tendo examinado o estranho e desconhecido fator da morte da Sra. Anderson. Ouviu também celar janelas e uma risada gutural espaçada, como que soluçando. Algo que não se assemelhava a nada nesta realidade. Assim, enquanto se recompunha, observou que o fósforo já chegava ao fim.
Foi quando percebeu o retorno das trevas desumanas que o encobriam. Eram pesadas, azuis, blásfemas. Seus olhos não podiam sequer contemplar o próprio corpo, o pincenê à sua frente, as mãos que tateavam os bolsos do paletó em busca de mais fósforos. Então, pareceu-lhe ouvir, cada vez mais se aproximando, passos espaçados e pesados. Quando enfim achou um último fósforo no bolso traseiro de suas calças, deparou-se de repente com o Sr. Anderson, palido como um cadáver. Teve um sobressalto, e quase caiu ao tropeçar na mulher morta ao chão.
O Sr. Anderson tencionava dizer algo, mas sua voz não saia da garganta. Ele tremia, seus joelhos flexionavam, e seus olhos piscavam com a claridade. Ele estava em estado de choque! "Recomponha-se, homem, ainda há saídas que precisam ser bloqueadas; não podemos deixar que Meg saia desta casa."
Para o súbito espanto e horror do Doutor Bauer, o pai de Meg Anderson desfaleceu sobre ele, balbuciando algo incompreensível. Seu corpo ainda permanecia quente, então era provável que atrairía a atenção da garota. Num repentino ato desesperado, o Doutor percorreu a casa toda num salto, e fechou toda e qualquer janela, porta ou entrada, até sair pela porta da frente, de onde viera, e bloqueá-la com uma tábua que por fortuita graça encontrara largada no jardim.
Quando se despedia da casa, olhando sempre para trás, teve um espanto ao se encontrar cara a cara com um jovem robusto, de porte atlético e trajando roupas de jardinagem. Logo reconheceu nele o antigo jardineiro da casa dos Anderson.
- Vim aqui prestar minhas últimas contas com os meus antigos patrões. Não trabalharei mais aqui, mas ainda me devem dinheiro.
- Seus patrões estão mortos. - Disse, com o olhar lívido e o semblante apavorado.
- Céus!
- Mande incinerar a casa! Não há nada melhor para combater o que está acontecendo aqui!
Despediu-se do jovem jardineiro, subindo no coche que o esperava à frente do portão da casa dos Anderson. Na pressa, nem notou onde estava o cocheiro naquele momento, mas presumiu que não estivesse muito longe. Trancou-se no cubículo, à espera da volta do condutor, como a única precaução que poderia tomar contra qualquer diabrura que lhe pudesse acontecer. Foi quando, à luz da lua cheia, pode com dificuldade observar que uma das janelas da casa permanecera aberta. Ele logo pensou que não valeria o risco sair dalí para fechá-la, e adentrar novamente no ninho do diabo.
Perjurou o cocheiro que tardava, mas temendo que suas palavras o traíssem, escondeu-se no próprio silêncio e na noite que caía. Foi quando começou a ouvir um ritmado e constante toque do que parecia uma complexa engrenagem. O som vinha de trás de si, como que do porta-bagagens. Encolhido em seu canto, o Doutor fez uma última oração silenciosa, enquanto ouvia o tiquetaque do relógio se tornando cada vez mais agudo, as trevas cada vez mais densas, e dois olhos vermelhos brilhando na escuridão.

Odisséia na Escuridão: Contos de Fantasmas, Demônios e VampirosOnde histórias criam vida. Descubra agora