Sherlock Holmes em - O Oculto

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Um caso consideravelmente peculiar sobre o qual meu velho amigo Sherlock Holmes se debruçou certa vez é algo que até hoje ne causa pesadelos, o que é notório, já tendo eu presenciado os horrores da guerra e sobrevivido ao inferno nesses tempos de minha vida, não tendo mantido, contudo, semelhantes calafrios aos que me foram causados pelo caso do jovem americano.
Era uma tarde negra em Londres, quando ainda morava com meu amigo - isto é, antes de me casar - e, àquele ponto de nossas vidas, não era incomum que alguém aparecesse à nossa porta a fim de solucionar um caso, por mais banal que fosse. E por mais banal que fossem os casos, aceitavamos de bom grado: eram tempos de muitos gastos e pouca economia, o que significa que tinhamos de nos garantir de que nosso meio de subsistência, isto é, os trabalhos de consultoria de Holmes, permanecesse ativo e próspero. Sabia Deus apenas o que o desejo pela prosperidade leva um homem a fazer!
- Veja que interessante, Watson - Dizia ele, com um livro aberto em mãos. - Diz-se que no Haiti, os cultos de vodu, de origem africana e sincrética, possuem um caso peculiar de ingestão de psicotrópicos relacionados a torpores e estados alterados de consciência.
- Intrigante, no mínimo. Qual é o nome deste livro que está lendo?
- "As Faces do Nzombi", de Renaut Benoit - E prosseguiu com sua explicação - é dito que nestes cultos, há um sacerdote que se utiliza do veneno do baiacú a fim de tornar o membro da seita totalmente suscetível às suas sugestões, criando o que em línguas do oeste africano se conhece pelo termo "Nzombie", ou fantasma. Em termos práticos, um escravo à sua vontade.
- Isto é assombroso, deveras! Pergunto-me o quão longe podemos chegar com estas descobertas!
- Talvez tão longe quanto as Américas!
- Pois não?
- O jovem americano que está se dirigindo para cá parece ter algo a contar sobre suas viagens em terras estrangeiras!
E de fato era um americano que se aproximava de nosso endereço, embora só o fosse reconhecer como tal quando se apresentou. Apertou a campainha e foi atendido pela governanta, que o encaminhou para a sala, onde estávamos à sua espera.
- Boa tarde, senhor Holmes. - Disse, visivelmente afetado por algo. - Chamo-me Elias Longwood. Sou residente da Pensilvania, mas vim para cá graças ao novo emprego que minha mulher arranjou para mim, e é sobre ela exatamente que eu gostaria de lhe falar e, assim, pedir seu aconselhamento numa situação que a envolve.
O jovem americano prosseguiu com seu relato.
- Minha mulher e eu nos mudamos para Londres graças ao previamente mencionado emprego que ela me garantiu. Estávamos bem até certo ponto, mas infelizmente os custos com a vida aqui se provaram ainda mais custosos.
Minha mulher, Charlotte, é uma moça vivaz e alegre, mas nos últimos dias têm se demonstrado muito perdida, com largas olheiras e cansaço excessivo. Ela diz que sempre sai para fazer trabalhos irregulares com suas recém-adquiridas amigas londrinas, como costureira, e ultimamente, é ela quem tem bancado a maior parte das despesas.
- E que problema há na mulher prover para a casa em momentos de necessidade extrema? - Comentou Holmes, como sempre, à frente de seu tempo.
- Temo que haja mais sob o véu da noiva com que me casei. As vezes penso se ela não estará se imbuindo de problemas…
- O senhor teme que ela tenha um caso? - Indaguei.
- Pouco provável. - Disse Holmes. - Ela aparenta sinais de cansaço e olheiras, certo? O que mais ela apresenta?
- Seu hálito é, receio ter de dizê-lo, enjoado, e parece sonhar acordada, mas sem o fascínio e a vivacidade de um sonho bom. Às vezes temo tê-la perdido para a demência!
- Acalme-se! - Disse Holmes. - Ainda não é hora de largas as rédeas da situação. Precisamos de paciência e compostura. O que o senhor Longwood tem mais a dizer que poderia nos ajudar em nosso caso?
- Bem, ela sempre diz que vai visitar amigas nas redondezas, mas não me dá a localização exata. Eu, como confio nela, acedo aos seus pedidos de privacidade.
- Muito bem, senhor Longwood. Estaremos trabalhando no seu caso e lhe retornarei o mais prontamente possível.
- Sou imensamente grato pelo auxílio, já de antemão, Mr. Holmes. Doutor!
- Senhor.
- Agora preciso ir para casa, ver se consigo um pouco de descanso. Até mais, Mr. Holmes, e Doutor!
Despedimo-nos do Sr. Longwood, que saia apressado, e Holmes recostou na poltrona, entrelaçando os dedos, como de costume em seu estado meditativo.
- Watson.
- Holmes?
- Preciso consultar meus agentes de campo.
- Os garotos de rua?
- São mais do que apenas isso. Estão muito à frente de toda a Scotland Yard!
- Pois bem.
A noite se aproximava, e fui tomado de um estupendo cansaço, que me levou à cama mais cedo do que de costume. Holmes permanecia na poltrona, estoico e austero. No dia seguinte, eu procurei por ele e nada encontrei.
Era de seu gênio: às vezes desaparecia por dias a fio, e no final da tarde seguinte a esta outra, ouvi os sinos que a governanta instalara na entrada tilintarem.
Chegava Holmes, exaurido e estupefato. Pediu que me assentasse e assim o fez também, exausto como estava.
- Watson.
- Holmes?
- Você conhece o provérbio galês "não se pode servir a Mamon e a Deus ao mesmo tempo"?
- Receio que de galês não tenha nada. É um excerto do Novo Testamento.
- Meras trivialidades.
- Mas o que conta disso?
Holmes então começou a me relatar os eventos dos dois dias passados.
- De manhã, procurei por Wiggins e seus companheiros, pelos quais recebi a informação de que a senhora Longwood caminhava sozinha pelas ruas da antiga usina Sherringford. Com isso em mente, busquei segui-la, disfarçado, até um beco escuro, aonde cheguei e me deparei com uma escadaria que levava ao porão de um edifício muito velho.
"Presumia que algo se passava com a senhora Longwood desde que seu marido nos relatou de seu estado de torpor e alienação, o que me levou à conclusão de que, por mais fortuito que seja, eu já me deparara com algo semelhante, ao menos no campo teórico."
"Veja, Watson: você se lembra do livro de que lhe falei há alguns dias? Exatamente: As Faces do Nzombie. Esta obra peculiar me fez perceber o quanto a senhora Longwood demonstrava sintomas semelhantes aos descritos por Benoit como parte dos rituais haitianos de vodu. Psicotrópicos! Eis a resposta que buscávamos!"
- Mas como uma moça de família se envolveria com algo desse tipo? - Perguntei, pasmo.
- É elementar, veja: descobri por registros bibliográficos sobre a velha fábrica e suas dependências, e por meio de minha própria pesquisa de campo de que a Sra. Longwood envolvera-se com uma seita de cunho religioso chamado Adoradores de Mamon. Veja: os membros deste culto ao antigo deus cananeu trocam favores entre si, bem como bens materiais e mesmo dinheiro. É como um culto à prosperidade, com um preço nada barato, a despeito das aparências.
- Por favor, explique.
- Trata-se de uma seita que exige total engajamento de seus membros e, como uma de suas práticas canônicas, têm o costume de ingerir certos elementos tóxicos, de modo a influir um estado de torpor e extrema susceptibilidade do indivíduo. Assim, eles conseguem se manter coesos, unidos e prósperos, ainda que às custas da liberdade de seus membros.
Eu fiquei estupefato pelas revelações de meu companheiro. Cheguei a indagá-lo, então, sobre nosso contratante.
- O Sr. Longwood, ao ser informado do estado de sua esposa, e estando em uma situação econômica nada favorável, decidiu regressar à América às pressas, com sua mulher. Ele partiu nesta mesmíssima manhã, apenas com o que lhe restava para custear a viagem. Receio que não seremos pagos pelo serviço.
- Lamentável!
- Mas ainda sinto que cumpri um dever com algo maior do que o dinheiro, Watson. E, como você sabe, não se pode servir a Deus e a Mamon ao mesmo tempo!

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