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Mesmo com a pesada chuva, a lua ainda brilhava forte no céu, como se não se importasse com o choro compulsivo das nuvens. E suas lágrimas caíam e molhavam as flores, as árvores, a grama, servindo de vida para estas. Muitos não gostam de dias assim: chuvosos, carregados, mas para Ariel esses são os dias perfeitos. São nestes momentos que ela sente que seu interior e o ambiente estão em harmonia. Um dos poucos momentos em que realmente se sente em casa no seu apartamento de três cômodos. Não é engraçado como algo que dá alegria para uns pode ser profundamente triste para outros? Do sofá da sala, observava a chuva bater na janela. Ela não tem saudades da casa da mãe, de fato, mas nunca conseguiu sentir-se pertencente a algum lugar, ou a alguém. Na verdade, talvez não seja tão arriscado dizer que ela nunca conseguiu realmente sentir afeto. Tudo o que Ariel lembra de sentir desde sempre é agonia por não sentir. Parece confuso, certo? E é. Talvez a última vez que ela disse "eu te amo" para alguém foi antes de entender o que eram esses sentimento de afeto e perceber que ela não os possuía, que ela só conhecia o amor por definição de dicionário.

A moça suspirou e lentamente deitou no sofá velho. Mais uma noite sem dormir, remoendo as coisas do passado. Ela fecha os olhos tentando não pensar nas coisas do presente e suspira, novamente, de preocupação com o futuro. Por mais que tente levar um dia após o outro, estas coisas sempre a tiram do sério. É algo aterrorizante: a incerteza da vida. Você nunca sabe o que está por vir. Mas o pior é quando simplesmente não vem, quando nada acontece e tudo permanece na mesma monotonia de sempre.

A garota estava tão absorta em seus pensamentos, que não percebeu o sol surgir por trás das nuvens, como uma lanterna debaixo do lençol. Levantou e aproximou-se da janela, abrindo em seguida. A rua estava molhada e praticamente deserta, apenas algumas pessoas saindo para o trabalho. Ela olhou para o prédio da frente e viu alguém sentado no parapeito do terraço, ele a encarou de volta. De longe a moça ouviu o alarme do celular tocar, então olhou na direção do quarto e, em seguida, voltou o seu olhar para o prédio vizinho, mas a pessoa tinha sumido. Ela, então, apertou os olhos e tentou enxergar algo, até onde seus olhos podiam alcançar, mas não achou nada. Intrigada, fechou a janela e foi até o quarto para se preparar para o dia.

Quando Ariel saiu de casa, a rua já estava bastante movimentada. Duas mães conversavam enquanto seus bebês brincavam na grama do parquinho da esquina. Ela olhou para a cena e lembrou de sua mãe. A moça nunca conseguiu realmente definir o que a mulher sentia por ela, mas tinha certeza que era tudo menos amor. Os pais amam os filhos e os filhos amam os pais. É assim que tem que ser. Mas por algum motivo, ela nunca recebeu isto da mãe. E desde que se entende por gente, ela tenta entender porque não ama como todo mundo, porém, depois de algum tempo ela chegou à conclusão de que a própria mãe passou essa maldição para ela. Já o pai, bem, ele não o conheceu. Uma vez a mãe a disse que ele morreu, outra vez disse que ele fugiu com uma amante, e disse, também, que ela o não lembra quem ele é. Ariel nunca soube no que acreditar de verdade, mas uma coisa é certa: ele também não a queria. A jovem fechou os olhos e pendeu a cabeça para o lado, batendo levemente na janela do ônibus. Tudo o que ela não queria era pensar nisso naquele dia, mas era impossível: o seu aniversário trazia à tona muitas lembranças ruins. A garota abriu os olhos novamente e percebeu que a próxima parada era a sua. Ela desceu um pouco antes da joalheria onde trabalha e foi surpreendida por duas mãos grandes que cobriram o seu rosto. Ela revirou os olhos pois já sabia a quem pertenciam aquelas mãos.

— Kim. — Ela ouviu o amigo rir e afastou as mãos do rapaz.

Kim era colega de trabalho e de faculdade de Ariel. Ele tem quase um metro e noventa de altura, mas é tão doce quanto um panda. Eles se conhecem há cinco anos e, por algum motivo, ele ainda não desistiu dela. Mesmo com todos os foras, com todas as vezes que ela cancelou programas com ele, o rapaz ainda estava lá. Ela tinha um pouco de pena dele, mas pelo menos não estava tão sozinha assim.

— De mau humor, Ari? — Ele sorriu. Às vezes Ariel odiava o bom humor do amigo. As pessoas sorriem para fazer outros sorrirem, mas isso não costuma funcionar com ela.

— Noite ruim, só isso. — A moça forçou um sorriso para agradar o amigo, mas ele infelizmente é estudante de psicologia, ou seja, muito observador, as vezes até a assusta o quanto ele decifra as suas falas e ações. — Não se preocupe, Kim.

— Ok. — Ele assentiu. — Vou me preocupar.

— Olha, de verdade, não precisa. — Eles pararam em frente à joalheria em que trabalham. — Pelo menos por hoje. Ok?

— Ok. Ah! Eu tenho algo pra você. — O rapaz abriu a mochila e tirou uma caixa mediana e colorida de dentro. — Feliz aniversário, pequena sereia.

Ele entregou a caixa para Ariel, que abriu muito curiosa. Era uma pintura: uma patinadora de gelo com trajes que lembravam a Pequena Sereia. Ela parecia ter acabado de executar um salto perfeito e pousava delicadamente. Parecia um anjo tamanha a graciosidade. A garota só percebeu que ela fora retratada como patinadora quando viu os cabelos vermelhos iguais aos dela.

— Muito obrigada, Kim. — Ela sorriu, agora de verdade. Estava realmente surpresa pois o amigo sempre esquece datas comemorativas.

— De nada. Ei, eu posso te ver treinar hoje? Eu sei que você não gosta, mas é só por hoje, por favor! — Ela suspirou. Sabia que ele não desistiria tão fácil, então apenas assentiu. — Ok! Então eu te espero fechar tudo, já que hoje é o seu dia de encerrar, não é?

— É? Acho que esqueci. — Ariel guardou o presente e eles entraram na enorme loja, em direção à sala dos funcionários.

— Sim, o cara novo não veio, não sei o que aconteceu. Aí ficou pra você. — Ele disse enquanto guardava a mochila num armário. — Vou indo.

Kim saiu da sala rapidamente. Depois de trocar os sapatos simples por outros elegantes, a jovem iniciou seu dia de trabalho.

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