Capítulo 1 - Infância

16 1 1
                                    

Vou começar essa história falando um pouco da minha infância, porque para você leitor entender o que acontece no presente, você precisa voltar e entender o meu passado.

Imagine uma casa simples e clichê, com a cerca branca, a casa perfeita, com jardim perfeito, com pais amorosos e amigos que estão ali para o que você precisar, imaginou? Então, essa com certeza não foi a minha infância.

A minha infância foi bem conturbada, pelo que eu me lembro, agora eu sou velho e não lembro muito bem das coisas que aconteceram, mas isso que aconteceu me marcou e eu acho que vale a pena eu contar.

No dia 26 de junho de 1994, numa bela tarde, havia sol, tinha passarinhos cantando, tinha barulho de carro e mesmo sendo interior parecia que a cidade toda estava dentro da minha cabeça, eu não entendia, mas eu sabia que alguma coisa estava errada comigo e foi aí que eu percebi, aquilo não parecia ser verdade, tinha muita coisa ali, eu estava enxergando muitas borboletas e uns passarinhos que eu nem sei o nome da espécie, a minha mãe estava na cozinha de casa preparando o café da tarde, meu pai estava na garagem consertando um carro antigo, meus amigos?... eu não sei, eu só estava brincando, me divertindo, correndo, observando, ouvindo e sentindo, mas eu não sabia da onde vinha tanto sangue, eu não conseguia entender. Eu me lembro que minha mãe olhou pela janela e me viu deitado no jardim, ela pensou que eu estava brincando, mas eu não estava, eu já havia parado de brincar fazia um bom tempo, meu pai por sua vez levantou com as mãos cheias de graxa e se aproximou de mim e do meu pequeno corpo deitado no jardim, naquela grama linda, verde e baixa, ele também pensou que eu ainda estava brincando, mas ele percebeu o sangue e então ligou para ambulância, depois disso é tudo um borrão, eu lembro de estar deitado em uma cama e tinha algumas agulhas no meu braço e tudo ao meu redor era branco e eu não estava mais vestindo as minhas roupas, meus pais estavam na porta do quarto conversando com o doutor, eu não sei o que estava acontecendo, eu só estava brincando... O doutor entregou uma receita de algum remédio para minha mãe e daquele dia em diante eu comecei a tomar o tal remédio, eu não sabia para o que servia, mas a minha mãe falava que eu não poderia deixar de tomar, porque coisas ruins poderiam acontecer.

Eu me sentia um super-herói, que se não tomasse a sua pílula, viraria um grande vilão. E mesmo quando criança esse meu pensamento não estava tão longe assim da realidade.

Crianças podem ser difíceis e ter uma imaginação muito fértil, elas podem ser muito maldosas e ao mesmo tempo ser doces e gentis, eu não era nem um e nem outro, eu era neutro, me sentia como uma folha em branco e ao mesmo tempo um rabisco cheio de erros e imperfeições. Qual criança que se sente assim? Solitária, estranha, incompetente e... Doente.

Depois daquela visita ao hospital, eu nunca mais fui o mesmo, a minha mãe não saía do meu pé, ficava me vigiando o tempo todo, não deixava eu brincar na rua, não me deixava fazer amigos e com o tempo eu acostumei a ficar sozinho. Uma hora todo mundo acostuma, né? A solidão é para poucos.

Com meus quinze anos, eu perguntei para minha mãe porque eu tinha que tomar aquele remédio e ela me dizia que era uma vitamina que me deixava forte e que eu precisava tomar todo dia sem falta senão eu ia ficar doente de novo e voltaria para o hospital, na época aquilo foi suficiente pra mim, ela não teria motivo para mentir,então eu só aceitei.

Eu ainda queria sair e me divertir, eu queria ser um adolescente normal já que a minha infância não foi das melhores, todo mundo da cidade me achava meio estranho e com razão, uma criança que passou a sua infância toda trancada dentro de casa e na adolescência resolve curtir a vida fazendo coisas de criança, eu saía e ficava correndo pela floresta que tinha ao lado da minha casa, minha mãe achava perigoso, mas eu tinha uma trilha lá, eu conhecia a trilha porque fui eu mesmo que fiz, no final dela dava para uma vista linda da cidade, dava para ver todas as casas, era perfeito lá de cima, ninguém poderia me ver e era ótimo, mas eu conseguia ver todo mundo, como um super-herói faria, observando sua cidade natal.

Eu lembro que um dia eu estava ansioso e eu não conseguia dormir, então eu acordei era umas cinco horas da manhã, a minha mãe já iria acordar e meu pai acordaria um pouco mais tarde do que ela, então eu vesti um moletom vermelho e fui para trilha e eu conseguia ouvir umas vozes, era voz de gente adulta e parecia que estavam brigando, mas eu não sei o certo, não enxergava ninguém eu só conseguia ouvi-los, eu achei aquilo incomum, ninguém entrava naquela floresta, ninguém sabia da existência da minha trilha, então como que tinha alguém lá? Eu não sei.

Na volta para casa eu confesso que estava meio perdido e eu não conseguia entender o porque, eu morava logo ali, mas eu não conseguia enxergar, eu estava cego da realidade, eu não conseguia enxergar o óbvio, o que estava na minha frente, mas eu conseguia ver e ouvir, mas também não era aquilo que eu estava vendo e ouvindo, consegue entender?

Quando eu finalmente cheguei em casa minha mãe estava sentada na varanda, em prantos, chorando e meu pai estava consolando ela, eu perguntei: "Mãe, o que está acontecendo? Porque está chorando?", ela levantou o olhar e correu em minha direção, me abraçou forte, ela estava preocupada, mas eu não estava conseguindo entender o porquê, ela me disse que não era mais para mim sair assim e então ela estendeu a mão e me entregou o comprimido, o maldito comprimido.

Amizade ou ilusão? Onde histórias criam vida. Descubra agora