Escolhi fragmentar

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As ruas pareciam desertos solitários, mas era de se esperar vindo de uma cidadezinha esquecida pelo resto do mundo, onde o único movimento recorrente era aos domingos, quando os feirantes vinham carregados das diversas variedades que iniciava em verduras e se dispersavam em roupas típicas para qualquer gosto, porém o equilíbrio entre paz e caos nem sempre foi estável nesse lugar. A peculiaridade de cada habitante era estranhamente indulgente, as faces eram facilmente reconhecidas. Muitos relutavam para fugir de comentários que envolvessem seus nomes, seria essa a torturante rotina de viver em um ambiente tão pequeno que a cada ato de seus passos todos já ficavam sabendo.

Naquele dia, aquele dia... onde meus olhos acolheram meu rosto pálido com lágrimas tão quentes que queimaram o medo que me afligia, foi quando decidi me libertar.

Era mais um dia de quarentena. A monotonia devorava os dias que se passavam. Um monstro faminto que pulava as horas e me deixava o pouco tempo que restava com sensações de cansaço e fadiga de um dia mal aproveitado. As aulas eram em casa, então não precisava fazer tanto esforço para me organizar ou me preocupar com a aparência detonada às 8:30 da manhã. Meneava meu rosto para um lado e outro esperando que isso magicamente encurtasse o tempo de aula.

Calçava depressa meus tênis na intenção de sair o mais rápido possível de casa. Me via entre muros grossos de uma prisão de segurança máxima. Não tinha muita surpresa depois de um dia exaustivo em frente a tela de um computador observando o professor gesticular ideias que pareciam labirintos infinitos que eu me perdia em cada caminho.

Minha rua era estreita de casas simples. Era o tipo de rua onde podia acontecer os mais inesperados acontecimentos. Vizinhos brigavam com mulheres e homens bêbados por conta do som alto tarde da noite, crianças que pareciam que suas peles estavam encardidas, sempre com roupas manchadas e bochechas marcadas pela última refeição. Acho que nunca as vi limpas. Mais adiante ficavam os lotes, era um espaço enorme dividido por várias ruas que se ligavam. Minha cidade que tem nome um tanto peculiar, se chama Ibiapina que do Tupi significa "terra limpa" ou "terra pelada", não tinha muitos centros atrativos para esporte, então era o principal meio de exercícios das pessoas de meia idade que costumavam caminhar por ali.

Já era final de tarde quando corria. O vento calmo não agredia tanto meu corpo. Na volta pra casa me deparei com um caminho de terra fechado por um matagal. Deveria estar escuro, pois as folhas das árvores eram ásperas e grossas tampando qualquer passagem de luz solar. Um relance brilhoso batia em meus olhos no fim daquele caminho, não seria tola igual nos filmes de me arriscar e ser morta por um assassino ou qualquer outra coisa que estivesse esperando um curioso de inteligência duvidosa entrar ali. Me aproximei e tentei tirar um pouco das folhas secas que tampavam a entrada. Soltei depressa os galhos e cambaleei para trás. Uma senhora de cabelos grisalhos parecidos com flocos de sorvete surge entre os caules das árvores. Seu olhar era tão tortuoso que era impossível distinguir qual era sua expressão, porém sua feição era de uma idosa simpática. Tento observá-la melhor. Ela estava um pouco distante, quase desaparecia no verde escuro do ambiente. Usava um vestido desgastado, as cores já não eram tão visíveis pelo fato de o pano estar corroído. Parecia que usava a bastante tempo. Minha presença foi descoberta. Seus olhos me atingiram tão forte que meu corpo congelou. Fiquei imóvel. Naquele instante fervia intensas emoções que sugavam todo ardor que tinha na alma, meus nervos se retorciam, minha pele queimava. Um sentimento de liberdade que ardia. Tudo isso em um curto espaço de tempo. A senhora revira seu rosto e se esvai nas sombras que o anoitecer vem trazendo. A realidade volta como uma bomba explodindo meu peito. Consigo sentir meus músculos voltando a ter poder sobre meu corpo. Corro depressa para casa, meus pensamentos são como bolas de linhas embaralhadas tentando remoer o acontecido.

2

Era uma manhã de sábado quando ia encontrar meus amigos. Moro em uma serra, por isso na maior parte do tempo o clima é úmido e fresco. Enquanto espero uma Van que me leve para outra cidade, o ar gélido me alcança me dando calafrios. Enfim, o transporte chega e a espera já não me incomoda mais. Não fica muito longe de onde moro. É outra região acanhada que fica ao lado da minha.

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