Eu tinha 3 anos quando arrumei meu primeiro namorado. Não que qualquer "namoro" quando se tem 3 anos de idade fossem um namoro de verdade, mas nos intitulamos "namorados", apesar de nem saber exatamente o que era isso. O nome dele era Henrique.
O nosso namoro consistia em, de vez em quando, pegar na mão um do outro e, ocasionalmente, uma troca de presentes (me lembro da bolsa jeans que ele me deu quando fiz 4 anos e eu fiquei apaixonada e a usava em todos os lugares), além de um senso de propriedade totalmente desnecessário. Essa última parte se devia ao fato de que uma das meninas da nossa sala, a Catarina, gostava dele. A minha sorte é que Henrique, em sua plena sabedoria em seus 3 anos de idade, me certificava que ela era só uma amiga.
Seria legal se eu dissesse que Henrique foi a pessoa que me deu meu primeiro beijo, ou que ficamos juntos por tanto tempo que acabou que ele foi o meu primeiro namorado de verdade, mas isso não aconteceu. Com 6 anos ele mudou de escola e assim acabou o nosso namoro, não porque a gente não se gostava mais, mas porque relacionamento à distância não funcionava com a gente. E é aí que entra a minha teoria de que a distância máxima para que um relacionamento sobreviva é proporcional a idade das pessoas envolvidas no relacionamento. No nosso caso, aos 6 anos de idade, a escola do bairro ao lado era distante o suficiente.
Mais ou menos nessa época eu estava ocupada com outras coisas mais importantes para alguém de 6 anos, o que facilitava a minha falta de relacionamento. Meninos só davam trabalho e eu precisava manter meu foco em, por exemplo, ser a primeira da classe em todas as matérias. Ao mesmo tempo eu sabia me divertir participando da atuação diária do episódio da noite anterior da série de super-heróis junto com meus amigos. Entre esses amigos tinha o Felipe. Ele era um menino de risada fácil e alguém que eu gostava de deixar claro que era mais baixo que eu. Nós éramos amigos desde que eu me conheço por gente e eu não conhecia uma vida sem que Felipe estivesse nela. Os super-heróis que nós interpretamos eram irmãos, então foi fácil a partir daí ele se tornar meu melhor amigo. Sempre que podíamos íamos um na casa do outro assistir outros desenhos e falar mais sobre esses desenhos, criando teorias malucas para o próximo episódio e comendo bolo de chocolate com suco de laranja.
Porém, quando não dava para sentarmos no mesmo sofá, na mesma casa, dávamos um jeito para assistir ao desenho juntos, porém separados, o que se tornou uma das minhas coisas favoritas. Funcionava da seguinte maneira: estávamos cada um em suas respectivas casas assistindo o mesmo programa em suas respectivas televisões, sentados em seus respectivos sofás. Mas o telefone estava lá do lado, porque no segundo que o canal anunciava o intervalo comercial, a gente apertava o botão de rediscagem e ligava um para o outro para comentar os últimos cinco minutos que haviam passado. Falávamos durante todo o intervalo, e assim que o desenho voltava, desligávamos o telefone para prestar atenção, apenas esperando o próximo intervalo para conversarmos por mais cinco minutos. Provavelmente nenhum de nossos pais gostava muito dessa atividade, já que isso implicava em bloquear o telefone por pelo menos uma hora toda noite, mas era impossível ficar sem comentar as aventuras que passavam nas nossas telas.
Eu nunca entendi como eu consegui um amigo igual o Felipe. Eu não era a criança mais doce do mundo e tinha o péssimo hábito de bater em qualquer criança que fazia algo que eu não gostava. Eu poderia dizer que isso era influência dos desenhos de super-heróis, mas pra falar a verdade eu fiquei mais calma depois que comecei a fingir ser um deles. Agora eu dizia que não valia a pena gastar meu tempo com quem me irritava. O Felipe era um doce de criança. Ele me segurava algumas vezes para eu não brigar com as pessoas, mas me defendia quando precisava. Não que eu precisasse muito, mas era legal saber que ele estava ali, mesmo sendo mais baixinho que todas as outras crianças. Ele também gostava de me desafiar, de um jeito que não fazia com que eu quisesse bater nele. Estávamos sempre competindo para saber quem era o mais rápido, o que escrevia mais rápido ou o que conseguia fazer mais cambalhotas no parquinho (ele era o mais rápido, mas eu dava mais cambalhotas).
Ele era muito inteligente em coisas que eu não era: enquanto eu sabia tudo de história e português, ele era muito bom em ciências. Nós dois competimos muito com notas, mas no final o boletim era parecido, já que um ajudava o outro. Levamos isso de ajudar um ao outro muito sério e mesmo com 8 anos já fazíamos questão de cobrir um ao outro quando estávamos encrencados. Uma vez fizemos uma competição para saber quem jogava uma pedrinha mais longe e eu acabei trincando uma janela da escola e eu tinha certeza que era o meu fim. Infelizmente um professor viu e contou para meus pais que tinha sido eu e fiquei de castigo, mas o Felipe fez questão de dar um jeito de decorar o episódio inteiro do desenho que eu perdi por conta do castigo e me contar, encenando diversos personagens e situações, para que eu não perdesse nada. Para mim, não havia amizade mais verdadeira que essa.
A primeira vez que eu senti algo por alguém que não era o Henrique foi quando o Felipe começou a fazer aulas de violão e tocou uma música para mim. Era uma tarde na casa dele como qualquer outra: fui para lá depois da escola, almoçamos arroz, feijão e bife, assistimos desenho, conversamos sobre o desenho, montamos um pouco um quebra-cabeças, comemos bolo de chocolate enquanto tomávamos suco de laranja e aí, do nada, ele vira pra mim e pergunta:
- Quer ouvir uma música que eu aprendi na aula de violão?
Eu disse que sim e ele correu para o quarto para pegar o violão. Eu nem lembrava que ele estava aprendendo a tocar o instrumento, mas quando voltou e se sentou no sofá, meio virado para mim, que estava sentada ao seu lado, percebi que futuramente ele poderia ser uma estrela do rock, ou um cantor sertanejo, não importava. O que eu sabia era que a pose dele segurando o violão já era convincente o suficiente para me tornar sua primeira fã. Então, ele começou a tocar uma música que eu não consigo lembrar qual era, mas que com certeza falava de amor, caso o contrário eu, do alto dos meus 9 anos de idade, não teria sentido o que seria o começo de borboletas no estômago e parado para pensar o resto do dia se as palavras de amor que ele cantou olhando no fundo dos meus olhos eram algum tipo de dica, ou uma espécie de declaração. Resolvi acreditar que não era nenhuma delas e que era só a música que o professor de violão dele havia ensinado. Nada mudou.
Por pelo menos um ano.
Quando eu tinha 10 anos, eu mudei de cidade. Se já estava difícil minha relação à distância com o Henrique quando estávamos a um bairro de distância, eu tinha certeza que eu e Felipe íamos ter problema agora que morávamos quase duas horas longe um do outro. De qualquer jeito, inocentemente prometemos não perder contato e nos falar pelo menos uma vez por semana, além de sempre arrumar um jeito de visitar um ao outro, mesmo que o recadinho que ele deixou na cartolina onde todos meus amigos assinaram parecia que eu estava mudando para outro continente e nunca mais iríamos nos falar.
"Ceci,
Você é minha melhor amiga e distância nenhuma vai acabar com isso. Sua cidade vai ser grande mas nossa amizade é maior. Vou sentir muitas saudades. Espero te ver de novo um dia. Me manda uma carta quando conseguir.
Felipe."
Pra falar a verdade eu sentia isso também. Foi uma das coisas mais difíceis que eu tive que fazer, largar tudo o que eu conhecia para ir para um lugar diferente, onde eu não conhecia ninguém e ninguém me conhecia. Provavelmente o mais difícil foi ficar longe do Felipe. Os desenhos não tinham a mesma graça de antes e não tinha ninguém para competir comigo ou me defender. Até bolos de chocolate e sucos de laranja não tinham o mesmo gosto. Eu não achava justo que o meu mundo, que estava perfeito, precisava mudar, e eu teria que perder meu melhor amigo. No fundo do meu coração eu sabia que não íamos manter contato e, mesmo que eu fosse visitar a antiga cidade e os antigos amigos, não seria a mesma coisa. E não foi.
Os dois primeiros anos passaram sem muitos problemas. Os novos amigos eram legais e me tratavam bem. Eu conheci a Fabi e ela me apresentou todo mundo. Na nova escola todo mundo se conhecia desde pequeno, igual eu conhecia o Felipe. Eu não me sentia por fora, mas ainda assim sentia falta dos amigos que tinha deixado todos os dias. Quase sempre eu dava um jeito de convencer meus pais que eu precisava ir para minha antiga cidade e eu só aparecia no meio da semana na minha antiga escola e invadia a classe como se eu pudesse (eu podia, a coordenadora tinha autorizado). Mas era cada vez mais difícil ver que a vida deles tinha seguido sem mim. Felipe ainda encenava o desenho, mas com outras pessoas, e mesmo que a gente conversasse, contando o que tinha acontecido na vida um do outro, era estranho e não era mais como se ele fosse o mesmo Felipe.
E assim fui perdendo contato.
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Caminhos do Amor
RomanceDesde sempre Cecília é apaixonada por romances. Viver em um é praticamente o sonho da vida dela e ela tem a sorte, e o azar, de encontrar muitos pelo caminho. Durante todo o seu caminho, da infância para a adolescência para a vida adulta, ela desc...