Único

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A culpa de Mozart ter morrido é minha.
Você não me conhece porque não sou um gênio como ele, que compôs uma sinfonia aos oito anos. Fui ofuscado por sua fama. Meu nome é Antonio Salieri.
Digo que fui ofuscado, mas perto de Mozart questionava se sequer tive brilho um dia. Por que logo ele tinha que ser abençoado com talento capaz de mudar o mundo? Ter um pai músico da corte lhe ajudou, claro. Ele se apresentava a frente da realeza quando eu nem tinha a ilusão de encostar num piano. Nasceu num berço de música, teve oportunidades que eu não tive, e ainda assim, de algum jeito se tornou um ser frívolo, mulherengo e arrogante. Por que ele? Eu poderia ter feito melhor. Juro que tive vontade de matá-lo várias vezes quando parava ensaios para trocar beijos com alguém escondido. Eu ficava no canto, de braços cruzados, tentando decidir se o odiava mais trabalhando ou não trabalhando.
Trabalhando, seu rosto era limpo da languidez da irresponsabilidade, mas era ainda mais louco. Decidiu que queria uma ópera em alemão num tempo em que todos sabiam que as únicas óperas boas eram as italianas. Mozart ria: “Ninguém ousou fazer isso antes? Ora, então eu vou ser o melhor por falta de concorrência”. E se uma soprano não pudesse tolerar a tortura de cantar notas feitas para a corda mais aguda de um violino, não para uma garganta humana, não a queria. Desumano.
O que significava que sua música era sublime, porque ele superara todas as limitações humanas. E eu tinha fantasias de estrangulá-lo por isso, de beijá-lo por isso, de fazer os dois ao mesmo tempo e testar a teoria dos antigos que a alma escapava pela boca quando alguém morre. Se eu pudesse roubar seu talento... não viveria nessa agonia.
Mas não foi assim que matei Mozart. E no momento da minha vida que quero contar, o pior que era capaz de fazer era amassar umas partituras dele. No instante seguinte, apressei-me a desamassá-las.
Foram por livre e espontânea vontade dadas a mim. Por algum motivo, meu arqui-inimigo me consultava, chamando atrás de mim: “Maestro! Maestro!”, apesar dos espinhos em cada elogio que me via obrigado a fazer às criações. Eu era o primeiro a vê-las, e se Mozart não fazia isso para esfregar na minha cara o quanto ele era impecável, então eu não sei para quê era. Mesmo os rascunhos menos polidos de todos não possuíam notas riscadas. Wolfgang Amadeus Mozart ouvia a música dentro de sua cabeça antes de colocá-la no papel.
E ouvia de um jeito que só ele entendia. Quantas vezes esmurrei o piano de madrugada por não conseguir tocar uma fração tão bem quanto o que ele cantara para mim durante o dia? Considerei enrolar uma das cordas do instrumento no meu pescoço e dar adeus a essa mediocridade miserável. A propósito, sobre ele cantar para mim: Mozart fazia questão de me corrigir quando eu não entendia a graciosidade de suas criações o suficiente. Se eu solfejasse algo que lhe desagradasse em minha leitura das partituras, ele olhava por cima de meu ombro, produzindo uma interpretação completamente diferente. E eu? Eu suava frio. A posição me dava a melhor vista de seus cílios loiros brilhando à luz do sol, do nariz empinado, do sorriso relaxado... Minha pele queimava debaixo da mão que ele usava para se pendurar em mim, mesmo com a barreira de tecido.
A vontade era de dar um tapa. Porém me resignei a encontrar uma desculpa para me afastar.
- Maestro Salieri, o que acha da aria da...
As palavras de Mozart morreram, o que era raro, tagarela como era, mas compreensível, visto seus olhos finalmente reparando o seu trabalho maltratado por minhas mãos trêmulas.
Preciso ressaltar que nas primeiras vezes que nos encontramos, Mozart se exibiu: me corrigiu sobre a melodia sem sequer um relance aos papéis. Tinha grande orgulho de cantar tudo da partitura de trás para a frente, a partir de qualquer parte, enquanto tocava no piano outra música. Ou seja, ele não precisava se pendurar no meu ombro. E ele sabia que eu sabia disso.
Só podia ser deboche.
Levaram exatos três segundos para sua reação. Sei disso porque ouvi meu coração: ba-dum, ba-dum, ba-dum, no ritmo de um metrônomo. Meu órgão que não funcionava por mim, apenas pela música, acostumara-se há muito a medir tempos, e nesses três segundos senti grande alívio. Era esse. Era o limite. Finalmente passara da tênue linha de polidez entre nós. Agora Mozart me xingaria, e talvez eu tivesse a chance de xingar Mozart antes de um de nós acabar matando um ao outro num duelo.
- Você está bem? – Mozart colocou a mão em minha testa, e então desceu para tocar o pescoço. – Está vermelho e com a respiração pesada.
Dei tudo de mim para espremer tom habitual, frio, e explicar:
- Uma aranha desceu em minha mão. Perdão.
Uma mentira, como você sabe, e a pior dentre todas as que eu podia ter escolhido em meio a confusão de “Por que ele não está com raiva de mim?”. Sem chance que ele acreditaria. Seguiu meus olhos às partituras amassadas e sorriu. Um sorriso de quem não sabia como eu podia ser tão ridículo, tenho certeza.
- Ora, não se preocupe com isso! Mais importante, ela te mordeu? – Mozart livrou meu pescoço, mas não me deu tempo de comemorar antes de tomar minhas mãos nas dele, examinando. – Ela não te mordeu, não é? Pelo visto... Que absurdo, como os empregados podem estar tão relaxados a ponto de deixar uma aranha existir na corte...
- Mozart.
Aqueles olhos cintilantes de inteligência subiram até mim.
- Eu estou bem.
É claro que Mozart sabia que eu estava bem.
Ele não era lento para entender coisas, mas não havia notado o clima estranho entre nós ou os olhares que eu lançava a ele? Difícil de acreditar. Conveniente demais para mim, não? Que ele se deu conta alguns segundos tarde demais de como eu estava esperando ele me soltar. Que mesmo assim não soltou.
- Ah, sim! Claro, você está bem! – Ele riu alto. – É claro. Nem a pior das aranhas picaria o venenoso senhor Salieri.
A esse ponto, meu nervosismo se dissipou. Eu sabia. Era tudo para me humilhar. Então por que doeu finalmente encontrar a cauda de escorpião em suas palavras?
Desci os olhos para nossas mãos dadas e decidi humilhá-lo também.
- É de seu hábito flertar até mesmo com colegas de trabalho, ou é algo que não consegue evitar, considerando como você e a senhorita Constance confundem a ópera com um quarto o tempo todo?
Meu tom de reprovação de nada adiantou ao som da risada melodiosa de Mozart. Até ela soava como música aos meus ouvidos.
- Senhor Maestro Salieri, se eu quisesse flertar com você, eu nunca pegaria tão leve. – Mozart brincou com meus dedos, formando um sorriso de canto distraído enquanto comparava o tamanho das mãos e como o uso contínuo de instrumentos e canetas de pena modelara nossos calos. – O que eu quero é apenas a companhia de sua mente habilidosa. Faz tempo desde a última vez que conversei com alguém assim. Como o músico que é, sei que vê algo no meu trabalho, por mais que deboche de mim junto do comissário Rosenberg.
Meu coração fez um dum em vez de ba e um ritmo ficou todo desengonçado. E pensar que seu teatro de acalmar Rosenberg aos olhos do público fora transparente assim.
- Você faz jus a sua fama. – Murmurei, me soltando dele, mas não consegui encontrar ímpeto de levantar do sofá. – Uma boca cheia de palavras doces que não deixam escapar nem homens nem mulheres... Saiba que não ganhará favores de mim com bajulação.
- Uma boca doce? – Mozart tocou nos próprios lábios, como se fosse a primeira vez que parasse para pensar no gosto que sentia na ponta da língua. – Quer provar? Ver se é verdade?
Aprontei-me para ir embora num pulo.
- Estou brincando! – Mozart gritou e gargalhou. Tratei de me apressar em escapar dessa risada, causando o resmungo: – Meu Deus, você é mais sensível que uma donzela sem coragem de sair de perto da dama de companhia.
A imagem de Mozart convencendo recém debutantes de saírem de perto de suas damas de companhia e passarem tempo a sós com ele fez meu sangue ferver. Antes que eu notasse, meus passos pararam.
- Senhor Mozart. – respirei fundo, por pouco conseguindo fazer minha voz não soar tão trêmula quanto o nó em minha garganta. – Não me lembro de sermos tão íntimos a ponto de vossa pessoa poder praticar “brincadeiras” do tipo comigo.
- E não é por isso que estou dizendo para sermos mais próximos? – Mozart pulou até mim e abriu os braços. – Deixe de rivalidade. Unidos, podemos ser muito mais.
Eu não podia ver fisicamente, mas quando ele estufava o peito daquele jeito, era como se tivesse diante de meus olhos a imensidão da ópera, como se ele estivesse me mostrando as cadeiras, as cortinas, os candelabros... E nós dois no palco.
Tipicamente, uma orquestra precisa apenas de um condutor. Mas eu queria estar lá quando Mozart estivesse dando cada pedaço de sua alma e cada gota de suor para produzir obras primas, e queria que estivéssemos lado a lado. No mesmo nível.
- Seja meu amigo, Salieri.
Coisa que não éramos, nunca seríamos.
- Não quero ser seu amigo. Passar bem.
Dei as costas para ele.
Esperei que ele se corrigisse: talvez a próxima coisa que dissesse fosse “Então seja meu amante”. Ele gostava de fazer piadas do tipo. Eu teria que ficar se ele dissesse isso, nem que fosse para explodir de raiva.
Mas não. Ele me deixou ir.
Por que me decepcionei? Era o que eu queria. Que ele sumisse da minha frente e me deixasse voltar à vida sem graça que era antes de conhecê-lo, mas muito mais segura. Se eu fechasse os olhos enquanto ele tocava piano ao meu lado mais uma vez, mesmo que mais um único dia, talvez enlouquecesse e dissesse que amo sua música. Que o odiava. Que o amava. Que queria que ele morresse e que passasse o resto de sua vida comigo.
Mas Mozart era assim mesmo. Ele não me adularia, não me convenceria a não me odiar, muito menos de não odiá-lo. E, apesar de minha escancarada repulsa, casou-se com Constance Weber. A garota que aparecia na ópera durante minhas inspeções no trabalho dele, e que num instante monopolizava sua atenção. Lembro dele olhar para trás, para mim, uma vez, antes de se deixar ser puxado pelo casaco por ela. Passei a noite perturbado com o que aquilo significava.
- Um ultraje! – Ouvi o comissário Rosenberg murmurar num canto do teatro imperial. – “O casamento de Fígaro”? Ideais revolucionários, notas demais... balé! O imperador está louco de permitir isso!
Ele cuspia as palavras enquanto batia a testa na parede. Ainda não me notara me aproximando, ou não teria continuado:
- E o Salieri? Bah! Completamente enfeitiçado, louco de amores pelo tal Mozart, o idiota. Ainda vai perder o emprego um dia desses! Tudo o que ele tem que fazer é não aprovar o trabalho, mas nããão, “A música de Mozart é sublime”, ele diz!
- Eu de fato disse isso. – Falei perto do ouvido dele, e vi seu rosto de distorcer em puro horror, meu colega gritando e pondo metros de distância entre nós. – Mas o motivo de não ter desaprovado dele e dito para você não o fazer é outro.
Ele pôs a mão no peito e acusou:
- Você quer me matar!
- Como adivinhou? – sorri.
- S-Salieri, meu amigo, eu nunca disse que você é idiota, eu quis dizer que Mozart é...
- Não se preocupe, não preciso me incomodar com isso. – Assisti alívio tomar conta de sua expressão. – Você não vai viver muito chamando o príncipe de louco, mesmo. As paredes têm ouvidos.
Ele esfregou o próprio pescoço, olhando para todos os lados, procurando alguma guilhotina pronta para ceifá-lo.
- Sorte sua que estão ocupados assistindo ao ensaio geral.
Rosemberg relaxou novamente e teve a audácia de me olhar feio.
- E por que o senhor não está lá também? Mozart deve estar sentindo sua falta. Quem sabe ele lhe dê um beijo, hm, por dar sinal verde para uma ópera criminosa?!
Respirei fundo. Não podia dizer que ele não tivesse direito de estar com raiva de mim, após humilhá-lo na frente do imperador: “É contra os bons costumes apresentar balé neste teatro!” Rosenberg disse, e impediu a apresentação. Coube a mim contrariá-lo e permitir que a orquestra tocasse antes que a veia saltando na testa de Vossa Majestade levasse a derramamento de sangue desnecessário, na pior das hipóteses.
- Ele não o faria na frente da esposa. – sorri. Rosenberg recuou,, de certo com medo de meus olhos o fuzilando.
O que eu queria dizer com isso, eu me pergunto? Que o Mozart de minhas fantasias me empurrava em um piano e me beijava por trás das cortinas, longe de telespectadores? Faria muito bem a mim lembrar a diferença entre realidade e imaginação. Embora para Mozart tal coisa não existisse. Sua imaginação era coisa viva e selvagem e saltava para fora de seu corpo possuindo instrumentos e partituras.
- Ridículo. – Rosenberg bufou e voltou a rolar uma carta entre seus dedos. – Você deveria ter roubado ele quando tinha chance, se ia ficar assim tão amuado. Agora supere! Ele nem era lá tanta coisa assim.
O horizonte da janela ao meu lado mostrava o Sol se pondo. Encostei nela, ignorando o pensamento intrusivo de pular. Mais um dia acabava, e com ele, a carreira de Mozart.
- É verdade, Rosenberg.
- Sim, claro que... Hein? Perdão?
- Você mesmo disse. É um ultraje.
Olhei as carruagens saindo às pressas do palácio, a fim de chegarem a tempo de verem o que o gênio Mozart tinha para mostrar.
- Eles logo vão perceber que entendem a genialidade de Mozart.
- Não estou entendendo, estamos falando mal ou bem dele agora?
Senti o Sol esquentar um lado de meu rosto ao virar para ele, enquanto o outro obscureceu-se.
- Mal. Muito mal. Meu caro Rosenberg... Venha cá. Baixe a cabeça, tenho algo para lhe sussurrar. Rosenberg, a nobreza não gosta de era desafiada. Fígaro é uma história em que um homem a desafia... Espalhe por todos os salões da corte as críticas mais venenosas sobre os ideais revolucionários da ópera. O imperador pode fazer que não se importa com os costumes, mas ele não poderá não se importar quando todos estiverem contra ele por querer que essa apresentação seja feita. E quando todos estiverem contra a ideia... Ele irá nos ouvir.
Os olhos de Rosenberg arregalam-se mais que xícaras de chá.
- Posso mesmo fazer isso?
- Você deve, se quiser ver a ruína de Mozart.
- E você?
Em vez de uma resposta, voltei a assistir o céu ser pintado de roxo e rosa. U belíssimo dia para uma vingança, combinando com o traje que Rosemberg fez questão de ajeitar para entrar em um salão.
- Ah, quase me esqueci. – Ele deu meia volta e me entregou a carta. – Isso é seu. É de você sabe quem.
Aceitei o envelope petrificado. Não o abri até aquela noite, nas horas tarde e cedo demais para que qualquer coisa fosse feita. A tinta na letra de Mozart às vezes brilhava, mas talvez até isso fosse minha romantização estúpida. O que eu esperava? Uma declaração de amor?
Era uma declaração de amor.
“(...) Estive certo por muito tempo que aprecio sua presença, maestro Salieri. Após me casar, compreendo que o que eu queria lhe pedir naquele dia não era sua amizade, mas um laço profundo e eterno que significa conhecer a alma do outro como a sua, porque se tornaram um. Esse tipo de união temos por nome, que eu conheça, de casamento. Então não se ofenda pelo motivo errado, está bem? Ache absurdo que eu tenha te amado, não que eu tenha pedido uma trégua. Falo no passado porque, como sabe, sou casado. Constance me levou a entender tudo isso. Antes meu coração passeava tão rápido que talvez eu nem me desse tempo de entender o que ele sentia, mas agora não. Comprometi-me e prometo me dedicar a essa promessa, então não precisa se sentir alarmado. Não irei atrás de você. Tudo o que lhe peço é que venha assistir a ópera, a qual anexo um convite, porque sei que nenhuma outra pessoa no mundo aprecia e compreende meu trabalho como meu querido maestro Salieri.
P.S: Nem eu sabia, mas eu estava sim flertando com você.

Espero que não exploda de raiva ao ler isso, já está no passado! Mas se explodir, fazer o quê?
Wolfgang Amadeus Mozart”
A carta saiu voando direto para as chamas no que terminei de ler. Minha respiração entrecortada e as gotas de suor frio duraram um tempo até me dar conta do que fiz e me arrastar até a lareira, tateando o que pudesse ter sobrado dela, mas já era tarde demais. Pedaços pretos de papel e fuligem eram tudo o que havia sobrado da revelação mais memorável de minha vida.
Mozart me amou. E não amava mais.
Bati meus punhos lambidos pelo fogo contra o chão, mas a dor ainda apertava meu peito e minha cabeça. Meu corpo gelava e tremia apesar da proximidade com o aquecedor.
E se eu tivesse ficado na sala naquele dia? O que teríamos sido?
Dessa possibilidade me restava agora apenas cinzas e um convite de algo que não só nunca participei, como também estraguei.
Em pouco tempo as fofocas ferveram na alta sociedade. Mozart perdeu o emprego, e ninguém ousaria contratar um que foi demitido pelo imperador. (Príncipe)
Ele se jogou em apostas em alcoolismo. Sem clientes, sem dinheiro, sem tratamento adequado quando os problemas de saúde vieram. Eu cheguei a aparecer para ajudar, mas Constance batia a porta na minha cara quando me via. Ouvi rumores que ele estava acamado e pensei que nunca mais o veria antes do caixão.
- Deixe ele... Agh! Deixe ele entrar, Constance.
- Wolfgang! Quando chegou aqui?! Você precisa ficar de repouso! – Ela largou a maçaneta da porta para apoiá-lo sobre seus ombros, visto como as trêmulas pernas de por pouco o levaram de cara com a parede.
- O único repouso que me resta é a morte.
- Não diga isso! Você vai melhorar! E você...! – Ela virou para mim. – Como ousa aparecer aqui depois do que fez? Não vê como ele está por sua causa?!
Tomei como minha deixa para me curvar.
- Estou profundamente arrependido e apenas quero ser útil. Se me fosse permitido voltar no tempo, eu o faria sem pensar duas vezes.
- Ser útil?! Então suma daqui!
- Constance. – Mozart a segurou pelos ombros. – A ópera foi algo que eu fiz. Os rumores apenas apontam o superficial. É falta de interpretação dos críticos. Figaro foi uma história que eu compus sobre amor, não sobre ódio. – Ele beijou a mão dela. – A culpa ou é minha de criar uma mensagem que ainda não pode ser compreendida, ou dos estúpidos que se denunciam quando a odeiam. Não de Salieri. Salieri é bem vindo.
Lágrimas brotaram dos olhos dela, descendo de suas bochechas apesar do lábio mordido para se segurar. Eu tive um pouco mais de autocontrole, encarei o chão como se eu não existisse.
- E eu quero que ele ajude com o meu réquiem.
- Você não vai morrer! – Ela gritou, agarrando as roupas dele.
- Shh...
Ouvi os sussurros de Mozart para ela, que soluçava em seus braços, até alguém desgrudá-la dele e com cuidado a levar para dentro da casa ao som de “Não há mais nada que possamos fazer” e “Deixe o senhor Mozart realizar seu último desejo”. Reconhecia aquele rosto. Lorenzo D’aponte, um escritor que também trabalhara comigo em algumas óperas. Por que Mozart iria querer minha ajuda, se...
- Ele não é um músico. – Mozart notou meu olhar.
E apesar de estar meio encostado, meio caído por cima da porta, com uma camada de suor frio em sua testa, ele sorriu.
Dei um passo adentro. Então outro. E então passei o braço por sua cintura e o apoiei em mim como vi Constance fazer. Mozart apenas me apontou a direção de seu quarto, que mais parecia um escritório, particularmente um após um furacão, com a quantidade de partituras espalhadas para todos os lados.
- Há um número considerável de músicos em Viena. – Eu disse, enquanto o deitava na cama.
- Nenhum confiável. – ele me entregou um maço de folhas em sua cabeceira.
Minhas mãos aceitando o trabalho eram como as cordas de uma harpa após serem puxadas, mal dava para vê-las de tanto tremor.
- Você me considera confiável?
- Há uns dias atrás, encomendaram-me um réquiem. – ele mudou de assunto.
- Eu ouvi sobre. O réquiem de Mozart para Mozart. Dizem que você afirma que foi encomendado pela própria morte.
- Eu a vi. O que eu vi não era desse mundo. – Seus olhos, já não mais tão brilhantes, capturaram os meus. – Você não acredita em mim, Salieri?
- O seu próprio trabalho não é desse mundo. Eu acreditaria em qualquer coisa que você me dissesse.
Meu acidental sorriso (com talvez um pouco de afeto demais) pareceu assustá-lo. Rapidamente me recompus.
- E é por isso que não tenho o direito de manchar este réquiem com composições minhas.
- Por...
Ele tossiu. Em seguida veio uma grave crise de tosse que não parou até suas mãos estarem sujas de sangue.
- Por favor, Salieri. Você não queria ajudar?
Meu coração afundou feito uma pedra em meu peito.
- Constance Mozart toca piano, ela poderia...
- Por favor, Salieri.
- Eu não estou em posição de fazer isso! – devolvi a partitura para a cabeceira. – Ela está certa, ela que tem direito, eu arruinei sua vida!
A mão de Mozart me segurou antes que eu fosse embora. Ela não tinha nenhuma força, mas foi suficiente para me deter, porque como você bem deve ter notado, dessa vez ele não me deixou ir.
- Então fique ao meu lado e... Agh... Apenas escreva o que eu eu disser, até meu último suspiro. Pegue a pena. Escreva: dó...
Daí eu passei dias e noites ao lado da cama dele, como Mozart bem disse. Assisti ele definhar, uma tortura. Mas também juntos completamos “Lacrimosa”. Estávamos repassando ela juntos, sua voz rouca solfejando algumas notas, quando seu olhos fecharam e seu som parou. Fiquei apenas eu cantando, sem ninguém para me corrigir sem nem precisar olhar para a partitura porque ele ouvia música em sua cabeça. Lágrimas desceram meu rosto: uma, duas. E então as sequei e levantei da cadeira. A esposa de Mozart chorava com convulsões, e eu não tinha direito de ficar mais arrasado que ela.
Mozart disse repetidas vezes que não, que era responsabilidade dele e de suas escolhas na vida, mas a culpa de Mozart ter morrido é minha.
Eu matei Mozart.
E agora que você sabe, chegou a hora do meu descanso também. Apenas espero, um tanto egoistamente, encontrá-lo outra vez. Em outra vida, outro tempo, outro mundo. Apenas quero sentar ao lado de Mozart e escutar sua música angelical durantes tardes ensolaradas por mais um segundo que fosse.
Embora eu saiba que, se eu encontrá-lo novamente, só vou fazer de tudo para que ele seja feliz.


Quem matou Mozart?Onde histórias criam vida. Descubra agora