Colisão de almas

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Becca

A noite do lado de fora da janela parecia agitada. Quase podia ouvir o som desse sábado a noite pela vibração que as luzes transmitiam. Já o ambiente no interior do carro era propositadamente alegre. Uma música dos anos 80 tocava no carro, era um dos cantores favoritos do meu pai, por isso não surpreende o movimento que os seus dedos longos e pálidos fazem contra o volante, ao ritmo da música. A minha mãe também faz parte da cena, com o seu sorriso perfeito acompanha o marido na cantoria como se também apreciasse a música. Tudo lindamente montado, encenada e maquiado, tal como as peças da Broadway, feito para transmitir sentimentos e uma realidade que os atores não vivem.

Quando os acordes lentos de uma certa canção começaram a tocar os nossos olhos se encontraram pelo retrovisor. Faz tempo que não olho diretamente para esse par de olhos, tão idênticos aos meus que me assustam.

- Olha Becky, é a tua música favorita, canta comigo. - olhei para a mulher que tenta acompanhar a música magnífica cantada por Whitney Houston, uma das poucas artistas antigas que ouço, mas não me dou nem ao trabalho de sorrir.

- Rebecca. - a sua voz reverbera pelo carro carregada de desaprovação. Os nossos olhos se cruzam novamente pelo retrovisor. Se fosse uns tempos atrás eu faria de tudo para que essa desaprovação desaparecesse dos seus olhos, para que ela fosse substituída por orgulho, orgulho de me ter como filha, mas agora eu pouco me importo, depois daquilo, eu pouco me importo com o que eles pensam.

- Deixa querido. - a mão escura e delicada pousa na coxa do "seu querido" com a intenção de o acalmar.

Então, cansada, desvio o meu olhar do dele e volto a me entreter com a paisagem lá de fora ignorando esse ambiente que tanto me causa revolta. Na verdade, tenho vontade de gritar, ofender eles e dizer o quão horríveis eles podem ser, mas, feliz ou infelizmente, os medicamentos que corem nas minhas veias não permitem que me descontrole.

Quando os enormes portões da mansão Holmes entraram no meu campo de visão o meu desconforto aumentou uns 10%. Eu não queria estar aqui, não queria ter de estar aqui. Ele parqueou o carro e voltou a olhar para mim, como um aviso claro, ou uma ameaça clara, entendam como quiserem, mas eu entendi como uma proposta.

Descemos do carro e caminhamos até a entrada luxuosa da mansão. Eu andava um pouco atrás deles. Vistos de fora parecem ser um casal perfeito, o meu pai com aquela beleza padronizada do homem branco, loiro de olhos claros e a minha mãe com uma beleza menos padrão, mas estonteante, com a sua pele escura maculada e o seu cabelo natural que parece uma coroa. Ambos bem sucedidos e com uma filha que distorce o retrato da família perfeita com os seus cabelos coloridos e maquiagens e roupas exageradas para esse meio. "Ela só quer atenção" lembrei das palavras que saíram da boca do homem que anda na minha frente com um fato feito à medida.

Chegamos no salão de festas, havia muitas pessoas importantes, não só no ramo da medicina, como em muitas outras áreas. Esse seria o primeiro ano que os meus pais participariam, por isso queriam causar uma boa impressão.

"Não me interessa que estejas chateada connosco, mas quando estivermos lá tens de ser, no mínimo, educada." Ele não precisou do senão, ele sabia que eu sabia das consequências de qualquer "proposta" que ele faz à mim. Por isso, cumprimentei e sorri educadamente para todo mundo que interagisse connosco, mesmo que isso me deixasse super desconfortável. Odiei o facto de um sentimento agradável ter surgido no meu peito quando ele olhou para mim com aprovação. Simplesmente isso, aprovação foi o suficiente para me deixar "feliz", ridículo.

Quando vi uma oportunidade de me afastar disso tudo, sem que dessem por mim, eu a abracei como uma bóia, e me dirigi para uma das portas que dava para um jardim enorme e bem cuidado.

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