Heirocco
por João Lucca
Prólogo - O Silêncio das Mães
Ano de 1894. O Brasil já proclamara sua liberdade. Mas não para todas as almas.
Eli não era um nome.
Era um eco.
Uma muralha de silêncio onde o som das mães se perdia, engolido por pedras frias e promessas esquecidas.
Ali, num casarão cinzento escondido entre plantações e névoas, dormiam e acordavam crianças sem passado, sem história, sem nome de mãe.
A lei, escrita em papéis que nunca tocaram o chão de terra batida, dizia que era "para o bem delas". Que crescer longe dos "vícios da raça" era a única chance de uma vida "civilizada". As mães, negras, marcadas não por ferro, mas por dor e coragem, choravam em silêncio enquanto entregavam seus filhos a freiras brancas e rígidas, que diziam servir a Deus.
Mas Deus não morava em Eli.
Morava o medo.
Morava o vazio.
Morava a pergunta nunca respondida: "De onde eu vim?"
As crianças de Eli não sabiam o que era um colo. Nem o cheiro de mãe. Tinham nomes dados por números, apelidos inventados pelas freiras. Cresciam em filas, rezavam em silêncio, comiam em sincronia. Eram corpos obedientes, mas dentro de cada um... uma chama pequena, persistente, viva.
E então... veio o balão.
Uma noite, o céu escureceu diferente. As freiras correram, mandaram as crianças para os quartos, trancaram portas. Mas uma delas - Aïna, de olhos grandes e curiosos - viu.
Viu o balão descer suave, como se dançasse no vento. Viu a luz pendurada sob a cesta. Viu um papel cair, leve, pousando no telhado de Eli como uma semente.
Ela não sabia ler.
Mas sabia sentir.
E ali estava o primeiro chamado.
O começo da verdade.
O começo da dor.
O começo da liberdade