Eu era um sobrevivente, sim, muito trabalhador, sim, claro que sim, claro. E o sol estava lá, brilhando como se a vida não fosse uma arena de gladiadores desesperados, encharcada de sangue, encarando o fundo dos nossos olhos patéticos, roendo os ossos da gente por parcelas, querendo o tutano do resto da vitalidade que, por conveniência, ainda habita o hemisfério esquerdo ou direito do cérebro (não lembro ao certo), enquanto nossa esclerótica, lotada de veias estouradas e mais lágrimas que sardas nas bochechas de um garoto com rutilismo, são perfuradas pela seringa da injustiça, e temos que nos confrontar até a morte, escravizados sabe-se lá por quem. E nunca houveram tantos pássaros tenores e coloridos cantando na minha janela. E a velha do 101 assobia lá embaixo, varrendo a calçada, arranhando o cimento como somente uma sádica infeliz, mal amada, virgem aos 57 e completamente insatisfeita com as varizes nas coxas teria coragem de fazer às seis da manhã de um maldito domingo infernal. Porque, ora essa, eu era um trabalhador, de folga, quase desempregado, talvez um trabalhador ao avesso, mas um proletário sim, um bravo operário do sistema, uma ferramenta dispensável, uma engrenagem substituível para o mecanismo. Não ter um emprego só era pior que uma coisa: tê-lo.
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