Vivi mais de mil anos. Morri incontáveis vezes. Esqueço o número exato. Minha memória é uma coisa extraordinária, mas não é perfeita. Sou humano. As primeiras vidas são um tanto indistintas. O arco da alma segue o desenho de cada uma das vidas. Houve minha infância. Houve muitas infâncias. E mesmo na mais antiga parte da minha alma, cheguei à maturidade muitas vezes. Hoje em dia, a cada infância que vivo, a lembrança vem mais depressa. Nos movimentamos. Olhamos com espanto o mundo à nossa volta. Lembramos. Digo "nós" e me refiro a mim, à minha alma, minhas personalidades, minhas muitas vidas. Digo "nós" e também me refiro a outros que, como eu, têm a memória, o registro consciente da experiência sobre esta terra que sobrevive a cada morte. Não há tantos, eu sei. Talvez um em cada século, um nascido entre milhões. É raro que nos encontremos, mas acredite, há outros. Pelo menos um deles tem uma memória bem mais extraordinária do que a minha. Nasci e morri muitas vezes, em muitos lugares. O espaço entre eles é o mesmo. Às vezes, me acho mais parecido com as casas e as árvores do que com outros seres humanos. Fico olhando levas de pessoas irem e virem. Suas vidas são curtas, mas a minha é longa. Às vezes me vejo como um poste cravado à beira do oceano. Nunca envelheci. Não sei a razão. Vi beleza em coisas incontáveis. Eu me apaixonei e ela é quem resiste. Eu a matei uma vez, morri por ela muitas vezes e ainda não tenho nada para exibir. Sempre a procuro. Sempre me lembro dela. Carrego a esperança de que, um dia, ela venha a se lembrar de mim.
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