MANUSCRITO ENDEREÇADO A MADRE MARIA DE GONZAGA
J.M.J.T.
Madre bem-amada, manifestastes-me o desejo de que eu termine de cantar convosco as Misericórdias do Senhor. Comecei este doce canto com vossa filha querida, Inês de Jesus, que foi a mãe encarregada por Deus de guiar-me na minha infância. Portanto, era com ela que eu devia cantar as graças concedidas à florzinha da Santíssima Virgem, quando na primavera da vida. É convosco que devo cantar a felicidade desta florzinha, agora que os tímidos raios da aurora deram lugar aos ardores do meio-dia. Sim, é convosco, Madre querida, é para atender ao vosso desejo que vou tentar redizer os sentimentos da minha alma, minha gratidão para com Deus e para convosco, que o representais visivelmente. Não foi nas vossas mãos maternas que me entreguei inteiramente a Ele? Oh, Madre! tendes lembrança daquele dia?... Sim, sinto que vosso coração não poderia esquecê-lo... Devo esperar o belo Céu, pois não encontro palavras capazes de expressar o que aconteceu em meu coração naquele dia bendito.
Madre querida, há um outro dia em que minha alma se uniu ainda mais à vossa, se isso fosse possível, foi o dia em que Jesus vos impôs novamente o fardo do superiorado. Naquele dia, Madre querida, semeastes em lágrimas, mas no Céu sereis cumulada de alegria ao vos apresentardes carregada de feixes preciosos. Ó Madre, perdoai minha simplicidade infantil, sinto que me permitis falar-vos sem procurar distinguir o que é ou não é permitido a uma jovem religiosa dizer à sua priora. Talvez não me contenha sempre nos limites prescritos aos subalternos, mas, querida Madre, ouso dizê-lo, é por culpa vossa, tenho convosco atitudes de criança porque não agis comigo como priora, mas como mãe... Ah! sinto perfeitamente, querida Madre, é Deus que me fala por vosso intermédio. Muitas irmãs pensam que me tendes mimado. Que desde minha chegada à arca santa só recebi de vós carícias e agrados. Mas não é bem assim. Vereis, Madre, no caderno em que relato minhas lembranças de infância, o que penso da educação forte e materna que recebi de vós. Do mais profundo do meu coração, vos agradeço por não me terdes poupado. Jesus sabia muito bem que sua florzinha precisava da água vivificante da humilhação, era fraca demais para criar raiz sem essa ajuda, e foi por vós, Madre, que esse benefício lhe foi dado.
Há um ano e meio, Jesus quis mudar a maneira de cultivar sua florzinha. Achou-a, sem dúvida, bastante regada; resolveu que ela precisava de sol para crescer. Doravante, Jesus só quer dar a ela o seu sorriso e o dá por vós, Madre querida. Esse sol suave, longe de fazer murchar a florzinha, a faz crescer maravilhosamente. No fundo do seu cálice, ela conserva as preciosas gotas de orvalho que já recebeu e essas gotas recordam-lhe sempre que é pequena e fraca... Todas as criaturas podem inclinar-se para ela, admirá-la, cobri-la de elogios; sem saber por quê, tudo isso não acrescenta uma única gota de falsa alegria à alegria verdadeira que saboreia em seu coração, por se ver o que é aos olhos de Deus: apenas um pobre nadinha, nada mais... Digo não entender por quê, mas não seria por ter sido preservada da água dos elogios enquanto seu pequeno cálice não fosse repleto do orvalho da humilhação? Agora, o perigo passou. A florzinha acha tão delicioso o orvalho do qual está repleta que não o trocaria de forma alguma pela água insípida dos elogios.
Não quero falar, Madre querida, do amor e da confiança que me manifestais. Não pensai que o coração da vossa filha esteja insensível a eles, mas sinto não ter nada a temer agora, pelo contrário, posso gozar deles, atribuindo a Deus o que Ele se dignou pôr de bom em mim. Se lhe agrada fazer-me parecer melhor do que sou, isso não me diz respeito. Ele é livre para agir como quer... Oh, Madre! como são diferentes os caminhos pelos quais o Senhor conduz as almas! Na vida dos santos, vimos que muitos não quiseram deixar nada de si depois da morte, nem o mínimo escrito, nem a mínima lembrança. Outros, pelo contrário, como nossa Madre santa Teresa, enriqueceram a Igreja com suas sublimes revelações, sem receio de contar os segredos do Rei, para que seja mais conhecido, mais amado pelas almas. Qual desses dois gêneros de santos agrada mais a Deus? Parece-me, Madre, que os dois lhe são igualmente agradáveis, pois todos seguiram o impulso do Espírito Santo, e que o Senhor disse: Dizei ao Justo que está Tudo bem. Sim, tudo está bem quando se procura apenas a -vontade de Jesus. Eis por que eu, pobre florzinha, obedeço a Jesus procurando agradar a minha Madre querida.
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História de Uma Alma
Non-FictionHistória de Uma Alma é a autobiografia de Teresa de Lisieux, uma freira da Ordem dos Carmelitas Descalços, canonizada pela Igreja católica em 1925. _ Disponibilizada em: blog.cancaonova.com/amigosdoceu