2017/2018- O Último Rebanho, capítulo 1

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    Suponho que devo contar tudo no meu ponto de vista, mas o meu ponto de vista muda muito rápido ao decorrer do tempo, então pode parecer meio confuso a princípio. Infelizmente esse será o único e, felizmente, o último depoimento oficial da terceira vítima de Vitor- ou da primeira, e pensar nisso me deixa muito nervoso, mas é o certo a se fazer.

  • Dia 28 de Novembro de 2016.

Pela manhã, Helena havia contado a mim que decidiu de vez que iria estudar advocacia e se formar na famosa Universidade de Stanford, no exterior. Pensei na saudade que sentiria, mas ainda assim, fiquei feliz e orgulhoso. Decidimos investir primeiro em um curso de inglês e nos mudarmos para que ela pudesse estudar mais, e com menos despesas por causa do transporte, mas confesso que acima disso fiquei com medo dela se tornar uma miniatura de você. Ela já era assustadora sem as habilidades de advogada, imagina o monstro que se tornaria se as possuísse.

Eu estava me preparando para uma entrevista em uma mansão.

Naquele dia, em especial, eu estava animado e feliz. Iria de bicicleta para um bairro longe e nobre, pois a mulher que me ligou havia me avisado sobre algumas coisas antes da entrevista. Ela disse, ou melhor, especificou: "Espero que não seja pedir demais para o senhor, mas eu gostaria de saber se poderia vir sem carro ou moto. Acabamos de receber uma criança com alto grau de autismo, e ela ainda não está acostumada com o barulho de automóveis ou com a casa. Para não a assustar, pedimos esse único cuidado. É claro que se não for possível, podemos marcar a entrevista em outro lugar". Eu disse para ela que não tinha carro, muito menos uma moto. Gostava de caminhar e pedalar de bicicleta, então perguntei se seria um problema ir pedalando. Ela  disse: "Não, é até melhor. Mas se for um incomodo podemos marcar em outro lugar, sem problemas". Insisti para que ela não se incomodasse com isso, e, com um sorriso no rosto, fui de bicicleta. Helena me desejou sorte naquele dia, eu sabia que algo de muito bom iria acontecer, mas tudo tem um preço. Eu só não sabia que começaria a pagar tão cedo.

Quatro quarteirões antes de chegar na mansão, um carro veio para cima de mim, só me lembro de olhar para a frontal do carro e ficar feliz por ser um Fiat Mobi. Pensei: "Pelo menos vou para um bom hospital". Acordei depois com dores maravilhosas, me apresentaram aos médicos e enfermeiros que cuidaram de mim, e que iriam observar o meu desenvolvimento depois do acidente. Dentre eles estava Vitor, que cuidava do pronto-socorro e estava me acompanhando de perto com dois residentes, pelo que eles próprios me explicaram, eram uma espécie de alunos, e iam cuidar das partes chatas. Eu fiquei honrado em ter eles por perto como como colegas, mas o que me salvou mesmo foram as visitas de Eduardo, ironicamente o homem que me atropelou, e também marido da mulher que me ligou pela manhã, e, claro, a companhia constante de Helena —pois mesmo depois ter brigado com ela para não perder o seu tempo e suas folgas indo naquele hospital, ela ia. Você sabe, ela era teimosa, mas sempre fazia o meu dia.

Foram longos seis meses de superação, fisioterapia e um tanto de aflição. Na época eu sentia uma coisa muito forte e ruim, como uma pressão no ar que me deixava desconfortável, jurava que era a presença de Eduardo, e talvez fosse mesmo, mas hoje acredito que aquilo que eu sentia era culpa de Vitor, e todo aquele sentimento era por causa daquela aura de energia tenebrosa e impiedosa que ele carregava sem deixar rastros. O curioso disso tudo é que Vitor não passava muito tempo comigo, ele era amigável, parecia passar uma boa impressão e sua presença, em geral, era calma. Durante as noites eu sonhava com alguém respirando fortemente perto de mim, sussurrando coisas que eu raramente entendia. Acordava apavorado, com o quarto vazio ou com um dos residentes. Imagino que você se lembre do caso que aconteceu no hospital. Uma residente foi supostamente morta pelas mãos de seu colega de trabalho, o motivo permaneceu oculto por quatro anos. Porém, o silêncio acabou quando você foi procurar mais sobre quem poderia saber do meu paradeiro, mas só foi enfim exposto pouco depois, quando Vitor o revelou. Pois então, suponho que tudo tenha começado no exato momento em que isso ocorreu.

Entre Pontos E Vírgulas - O Último ParágrafoOnde histórias criam vida. Descubra agora