Capítulo único.

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    "Por acaso você já ouviu a palavra 'presunção' alguma vez na vida!?"

    Foi a primeira coisa que escutei logo depois de acordar naquela manhã. Era Cinthia gritando mais uma vez com Marcus na sala, logo ao lado do meu quarto. Levantei da cama e rapidamente me dirigi até onde o linchamento verbal diário de Marcus estava acontecendo dessa vez – eu precisava acompanhar de perto.

    Acho assustador como Cinthia é sempre a única a irritar-se com ele. Até digo a ela que esse relacionamento não vai durar se continuar dessa forma, mas ela sempre responde dizendo que é muita presunção de minha parte pensar que posso opinar na relação dos dois. Eu não me contento, e retruco falando que presunção é o que ela esbanja quando diz que o jeito explosivo dela apenas completa o jeitinho calmo e passivo de Marcus, como se fossem o casal perfeito – mas a discussão nunca passa muito disso, até porquê ainda moro de favor no apartamento deles e não posso estragar minha amizade com eles.

    — Na real, eu já ouvi, sim — respondeu Marcus, num tom de voz hesitante. Eu estava a ouvir e observar toda a conversa pela fresta da porta da sala. — Só ainda não sei o que significa. Mas, também, nunca me preocupei em saber... Até porquê nunca foi algo que eu precisei fazer, entende? Inclusive, eu diria que é a primeira vez que eu converso com alguém sobre essa tal presunção e... — Cinthia o interrompeu.
    — Ok, ok, já pode parar de falar — os olhos celestes da moça se reviraram e percorreram a folha mais uma vez antes dela voltar a conversa. — Tem certeza que você não sabe o que significa essa palavra? A julgar por esse seu texto, não é o que parece (ou pelo menos, não deveria) — acrescentou Cinthia. — Nos primeiros quatro parágrafos, essa palavra apareceu três vezes e você conseguiu usar ela errado em duas oportunidades!

    Marcus a observou por alguns segundos sem saber como responder aquilo de maneira apropriada, tentando assimilar todos aqueles números, até que finalmente soube o que dizer.

    — Eu só queria escrever algo diferente. Tentei sair da mesmice que meus textos estavam sendo — ele confessou para Cinthia. — Acho que preciso mesmo reescrever o texto e usar menos essa tal de "presunção" que você tanto criticou — ele demonstrava estar prestes a cair em lágrimas.
    — Tudo bem, tudo bem — ela respondeu, tentando ajudar Marcus a segurar as lágrimas. — Você sabe que apenas quero o seu bem, né? Sei que é seu sonho essa coisa toda de escritor e tudo mais, mas me preocupa as nossas contas atrasadas, entende? Tudo isso, somado a droga do meu emprego, me deixa muito estressada, então acabo descontando em cima de você. E me desculpe – pela milésima vez – por gritar com você. Mas, agora, antes que você jogue fora tudo que escreveu, vamos revisar o texto mais uma vez.
    — Isso, vamos.
    — Mas, antes... — Ela se virou em direção a porta. — Você não quer nos ajudar, Ed?
    — Como sabia que eu estava aqui? — questionei-a surpreso.
    — Você sempre foi péssimo em se esconder. Mas, aí, vai querer ajudar ou não?
    — Ah... Melhor não — eu respondi. — Vocês dois sabem que eu nunca fui muito bom avaliando esse tipo de coisa.
    — Bom, tudo bem então — disse Marcus, dando de ombros. — Se mudar de idéia, pode falar, é sempre bom ter uma opinião além das nossas.

    Cinthia balançou a cabeça em concordância e eu lancei um joinha com a mão e uma piscadela com o olho esquerdo para não deixá-la sem resposta.

    (Só agora me toquei que ela pôde ter entendido isso como uma atitude passivo-agressiva de minha parte, mas enfim).

    Eles voltaram suas atenções à folha onde Marcus escrevia tão presunçosamente seu novo texto e rapidamente encontraram novos erros, enquanto eu os observava de uma das poltronas da sala.

    — E retornamos ao início da história — disse Cinthia, apontando para a área referida do texto. — Além das "presunções" que tanto usasse ao longo da página, você ainda jogou um bocado de informações e características sobre os personagens e simplesmente não os desenvolveu ao longo do texto.
    — É... tens razão — concordou Marcus, quando rapidamente mudou sua feição. — Por isso, acho que eu deveria tentar algo mais simples que um romance. Essa idéia que tive é presunçosa demais e não tenho muita certeza de que vou conseguir desenvolver ela. Muito menos de que vou conseguir escrever mais de 200 páginas de uma história como ela.
    — O que queres dizer com isso?
    — Me falta criatividade para escrever um livro, Cinthia.

    Pude sentir pelo ar que ela teve uma imensa vontade de gritar mais uma vez – Marcus até se pôs na defensiva –, mas ela se conteve e contou até cinco.

    — Eu lembro de ouvir você dizendo que essa seria a história que faria de você um escritor de verdade, Marcus — ela disse de maneira passivo-agressiva, assim como eu havia feito.
    — Desculpe decepcionar você, mas eu estava enganado — ele deu um passo para trás. — Ainda vai me ajudar com isso ou não?

    Cinthia fechou os olhos e continuou a contagem, indo até dez.

    — Sim. Eu vou te ajudar — ela disse de maneira ríspida e, mais uma vez, voltou a analisar o texto.

    Marcus olhou para mim, esperando algum apoio ou algo do tipo, mas eu não sabia o que dizer a ele. Tinha medo de piorar ainda mais as coisas.

    — Olha, para não dizer que ficou tudo ruim, eu gostei dos diálogos, de verdade. Ao menos, sabe dar uma personalidade aos personagens. Tente manter isso para quando for reescrever. Precisa dar uma detalhada melhor nos ambientes. E até que o final ficou decente, viu? Aparentemente nem tudo está perdido aqui — ela continuou a observar a história. — Na real, eu gostei muito desse final. Já que não vai fazer um romance a partir dessa idéia, devia ao menos fazer um conto com ela. Ela não pode ser totalmente descartada.

    Pela primeira vez em meses Marcus sentiu que estava no caminho certo. Era óbvia a felicidade em seu olhar e era clara a sua satisfação em saber que sua inspiração não havia sido em vão. Tudo isso rimou com o Tchutchucão e com presunção.

    — Acho que não há nada mais que valha a pena ser citado, seja algo bom ou ruim. Você tem um conto com potencial em mãos, meu amor. Dê o seu melhor, como sempre faz – ela ia se dirgindo a porta da sala quando no meio do caminho se lembrou de algo. — Ah, e antes que eu me esqueça, tenta ajustar o tom da história. Está muito cômico em momentos que deveriam ser sérios. Parece até um filme da Marvel — Cinthia acrescentou. — No mais, era isso. E boa sorte, meu bem.
   
    Marcus suspirou e me observou durante alguns segundos. Eu o encarei de volta, surpreso com tudo o que Cinthia havia dito.

    — Uau... Só... Uau! — Eu lhe disse. — Ela falou tão bem desse final que até me deu vontade de ler, cara. Eu posso?
    — Claro, mano. Pensei que você não ia querer ler isso.

    Quando Marcus me entregou a folha, ele parecia apreensivo para saber se seu trabalho estava realmente muito ruim ou se sua namorada que era muito chata com esse tipo de coisa, mas essa pergunta eu só poderia responder daqui alguns minutos.

    O início da história era bastante familiar para mim, pois as primeiras frases diziam:

    "Por acaso você já ouviu a palavra 'presunção' alguma vez na vida!?"
    Foi a primeira coisa que escutei logo depois de acordar naquela manhã.

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