O Exército Mental de Gustavo

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"O que se passa na sua mente quando o vazio toma conta?". Era apenas uma frase no muro, mas lhe tocou tão fundo que desceu do ônibus – vários pontos antes do seu – e encarava aquela superfície sólida como quem a desafiava que lhe arrancasse uma resposta.

Essa seria a única forma de se responder uma pergunta dessas, na marra. Não ele, nunca que Gustavo responderia isso com a implicância de repensar toda sua vida. Não é de agora que ele se esquiva da responsabilidade, sempre omitindo sua parcela de culpa nesse jogo chamado vida.

Sorriu. O sorriso mais triste e amargurado da sua vida. Se sabia que tinha algo errado porque não consertava? E socou o muro. O chutou. Gritou guturalmente, assustando quem passava por perto. E saiu pisando duro como se o muro tivesse lhe cometido uma grande afronta.

Ele foi embora, mais do mesmo. Faz parte do ciclo. Guarde as expressões de surpresa para quando ele ficar – ou estiver numa situação tão deprimente a ponto de ser obrigado a enfrentar a si mesmo.

Quantos projetos ainda tinham nos quais ele pudesse fracassar? Quantas pessoas ainda restavam para ele perder? Perder por sua culpa. Sabia que se não parasse não restaria ninguém. E que falta de autopreservação tinha nas que ficaram!

Ele já tinha se convencido que desta vez daria certo, estava noivo e seu relacionamento nem terminou em três semanas. É, estava. Outro sorriso amargurado e agora ele estava correndo. E corria como se pudesse correr da resposta pela qual ele sabotava tudo que era bom em sua vida. É claro que ele corria, processar aquela resposta significaria assumir a sua quase completa culpa.

~ ~ ~ ~ ~ ~


Ele já tinha se recomposto e caído na cama em um sono profundo. Mas acordou de madrugada com uma queimação na garganta, aquele episódio tão conhecido de quando ele estragava tudo. 

Mas o que se seguiu não era conhecido. Ele estava chorando? Sim, estava, e também rindo ao se perguntar se ainda era capaz disso. Gustavo, que tinha aquela risada tão cativante, uma energia que atraia todos ao seu redor como um ímã. Mas esta era uma risada triste.

E não parava. Ele só queria que parasse, e quanto mais clamava por isso mais aquele choro-sorrido se descontrolava. E a frase do muro que ele tinha conseguido bloquear de sua cabeça com a corrida voltou sem previsão para lhe deixar. 

"O que se passa na sua mente quando o vazio toma conta?". 

O que?

~ ~ ~ ~ ~ ~


Ele já sentia os primeiros raios solares atravessando a janela quando enfim conseguiu se acalmar. E a pergunta continuava vindo em pancadas consistentes. 

"O que se passa na sua mente quando o vazio toma conta?". 

Ela foi embora, não tinha para que e nem para quem fugir desta vez. Sabia que qualquer um dos inúmeros contatos lhe atenderiam no primeiro toque, mas nenhum deles fariam aquilo parar. Só ele poderia fazer. Então, amargurado, sozinho e sem grandes opções, ele aceitou.

– O que passa na porra da minha cabeça? - Gritou ele enraivecido para o vazio.

Se lembrou de Marcela, sua (ex) noiva, que a menor perturbação em sua vida meditava dizendo que a resposta para todo o caos externo estava em seu mundo interior. E ele achava graça da situação, mas sempre admirava como ela concentradinha era um charme. Apesar de nunca ter feito sabia a teoria. Era estupido, mas não faria mal, correto? O pior que poderia aconteceria seria um grande nada.

Então ele foi se acalmando com foco na respiração, e quando, pela primeira vez, deixou seus pensamentos fluírem livremente chegou a arquejar com os flashes que passavam embaralhados pela sua cabeça. 

Viu sua mãe lhe sorrindo – o mesmo sorriso triste que ele sorriu mais cedo. Viu Marcela contestando sua atitude e ele fazendo graça e a chamando de louca, pois sabia o quanto ela odiava que lhe chamassem assim e usava disso. 

Se viu estragando as inúmeras oportunidades que teve para alcançar seu sonho, todas as mulheres pelas quais se apaixonou por aquela áurea de paz interior, tudo que ele mais queria, e também se viu estragando cada um desses romances. 

Se viu sendo o otário que era com os amigos que não aceitavam suas piadas como resposta, que queria saber como ele realmente estava. 

E viu ele.

Entra ano, sai ano e a memória dele persiste. Como é possível pensar nesse cara que a tanto não vê mesmo sendo apaixonado por Marcela? Mesmo tendo tantos anos, tantas novas paixões que se seguiram depois que Donato foi embora? É, Gustavo também não faz a menor ideia.

Pensar nisso foi demais, com outro arquejo ele parou. E chorou novamente, essa função biológica que ele nem sabia que seu organismo ainda era capaz de reproduzir. E riu de novo, achava a situação realmente hilária.

Quando ele se aquietou novamente e se deixou pensar livremente seu peito comprimiu em saudades. Se permitir pensar nos amores da sua vida causava isso, era a razão de seus pensamentos serem tão ordenados e seu exército mental proibir pensamentos livres.

A saudade, a culpa, a dor do término e o remorso por tudo que poderia ter feito e não fez o colocou em um estado tão exaustivo que ordenar seus pensamentos exigia uma habilidade além de sua capacidade. 

Então deixou fluir e um sorriso nostálgico invadiu seu rosto, que falta ele fazia! Como ele estaria? Seria capaz de o perdoar por ter renegado um amor por orgulho? Quantos mais homens feitos que viviam como moleques suas ex teriam colocado para correr?

Se pareciam, elas, as mulheres pelas quais se apaixonou. Não em aparência, mas na liberdade do espírito, na ótima resolução com si mesma, no amor próprio tão bem fundamentado que nunca deixariam que um cara como Gustavo – mesmo engraçado, inegavelmente lindo, carismático e com alto astral – lhe roubassem a paz. Porque apesar destas características que todo mundo vê também tem aquelas outras – sua angustia inominada, sua condescendência com babaquices, sua necessidade de ser superior não alcançando o ombro da mulher que tem ao lado, o assassinato a sangue frio de seus princípios em nome da norma comum – norma essa válida apenas para ele, nem mesmo sua família a seguia.

Não se pode esperar o comportamento de meninas quando se está com uma mulher; obviamente ele foi deixado quando elas perceberam que ele não fazia questão de mudar. Ele não queria mudar. 

Indo de paixão em paixão bloqueava os pensamentos sobre ele. Mas agora que não tinha controle de nada, nem dos próprios pensamentos, se perguntava como estaria Donato. E seu estômago embrulhou de nervosismo ao lembrar dele.

Gustavo precisava saber por quem lutar, porque só estava fazendo com que todos saíssem perdendo. Precisava revisitar o passado, mas especificamente, Donato. Fazer as pazes, pedir desculpas e perdoar – quanto a ele Gustavo não errou sozinho. E abrir feridas.

Mas já não é hora? Já não era hora a tantos anos atrás quando começou a machucar quem lhe importava o suficiente para insistir em lhe ajudar? 

Sim, é hora.

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