Para meu pai
Trinta e um de dezembro de dois mil e vinte, vinte e três horas e alguns minutos, noite escura, clima quente de verão, uma praia vazia...
Esse poderia ser um cenário distópico para essa história, como também poderia ser um cenário real, dadas às situações catastróficas em que o mundo se encontra desde meados de novembro de dois mil e dezenove.
Mundo, terra, universo:
Em algum lugar um homem caminha sozinho pela praia vazia, descalço com a camisa jogada nos ombros, sandália nas mãos e um pequeno short ele caminha observando as janelas dos prédios que beiram a área do mar, muitas estão com as luzes apagadas, às poucas com luzes acesas não demonstram nenhum clima de festa ou comemoração, não há enfeites de natal, não há luzes piscando, ele para um pouco e observa mais atentamente, suas vistas vagueiam de um lado para outro como que procurando por algo ou alguém, até que encontra uma janela específica.
Na varanda há uma luz apagada, não há potinhos com plantas, flores, nenhum ornamento no teto, uma pequena mesa e três cadeiras empilhadas em um dos cantos preenche toda a área, nenhuma cortina na porta separando a sacada do que parece ser uma sala de jantar, atrás da porta de vidro descortinada há uma luz acesa, uma mesa pouco arrumada e um pequeno castiçal com duas velas, a cena lhe chama atenção, seus olhos continuam buscando por algo enquanto as águas do mar se quebram atrás dele em impetuosas ondas.
As árvores altas balançam barulhentas, o vento é forte, mas não o suficiente para espantar o mormaço que lhe aflige o rosto principalmente, sua respiração parece ofegante, abafada, então ele decide caminhar um pouco mais rumo à calçada que outrora estaria abarrotada de pessoas em busca do melhor lugar para ver a queima de fogos e ali mesmo senta-se ao chão, seus olhos buscam de novo a janela que outrora observava e quando a encontra, nota-se a presença de uma senhora em pé próxima da mesa acendendo as duas velas do castiçal.
Adornada em um vestido de cor bege quase branco, da praia o homem consegue perceber que a mulher está ligeiramente arrumada, ela sai do nível de suas vistas e volta segundos depois segurando alguns pratos com talheres e os coloca sobre a mesa, o homem se sentido sufocado arranca de seu rosto a máscara e finalmente consegue sentir a maresia preenchendo-lhe os pulmões, mas não sem um pequeno sentimento de culpa.
Ele desvia então o olhar para um carro que se aproxima em alta velocidade e rapidamente coloca novamente a máscara no rosto, o carro segue seu percurso, ele sente vontade de arrancar aquela focinheira novamente, mas algo o impede, talvez culpa, medo, sabe-se lá, quando levanta o olhar novamente para o prédio, suas vistas procuram rapidamente as janelas acesas em busca daquela que ele observava e então percebe que na sua ausência apareceu na mesa um assado e um prato que de longe parece ser arroz.
Em uma das janelas a luz se acende e o homem segue com o olhar alguém que vai até o telefone e logo imagina que deve está próximo da meia noite, o ano está virando, alguém deve está mandando felicitações pelo telefone, votos de feliz ano-novo e desejos de um ano mais ameno e com mais proximidade, o homem ao telefone leva uma das mãos à boca em sinal de espanto, surpresa nada boa, senta-se em uma poltrona ali do lado da mesinha do aparelho, não, não deve ser votos de ano-novo, ao contrário, deve ser só mais uma notícia de alguém que não verá a entrada do novo ano, alguém que parou em definitivo em dois mil e vinte. O homem ao telefone passa o dorso das mãos nos olhos como que enxugando lágrimas, da praia o homem imagina que ele faz um esforço para sorrir.
O ano não terminou para mais uma pessoa, ele imagina e volta o olhar para a janela que primeiro observava, agora encontra na mesa uma garrafa, como que de vinho, talvez champanhe e duas taças, procura pela mulher de vestido bege, mas não a encontra, deve está na sala aguardando a companhia terminar de se aprontar em outro cômodo – este ano não haverá visitas, mesas cheias e risadas altas, ele sorri triste e feliz por está observando aquela cena, nunca imaginou na vida que passaria uma virada de ano como essa, mas pudera, ninguém em sã consciência imaginaria que viveria um ano como esse.
Seu nariz coça, é a maldita máscara que solta pelos a todo instante, ele tem vontade de xingar, mas faz silêncio, há tempos ele tem optado pelo silêncio e a máscara na verdade não é maldita, ele bem sabe disso, também nunca poderia imaginar que máscara tornaria item de primeira necessidade, produto vendido em qualquer tipo de comércio, coleção de roupas que a colocam como peça do vestuário. Após coçar o nariz o homem volta sua atenção novamente para a janela em busca da mulher e de seu possível convidado, aguarda ansioso como uma cena de um programa de televisão, olha para o céu e imagina que falta bem pouco para a meia noite.
A mulher de vestido bege aparece novamente trazendo um pequeno jarro com flores em suas mãos, coloca sobre a mesa ao lado de um dos pratos, pega uma das taças e serve o líquido que de tão longe não consegue distinguir, mas imagina champanhe, devolve a taça para o lado do jarro com flores e só então serve a outra taça.
A cena deixa o homem na praia cada vez mais atento e curioso, ele procura uma posição mais confortável para continuar assistindo a cena, a mulher agora fatia o assado com cuidado, servindo um pedaço para si e outro para o prato em frente, senta-se à mesa olhando para o jarro de flores, a taça cheia e o prato com o assado, sua cabeça desvia então para cima e da praia o homem imagina que ela esteja olhando para um relógio.
Trinta e um de dezembro de dois mil e vinte, vinte e três horas e cinquenta e oito minutos, noite escura, clima quente de verão, uma praia vazia...
Faltando poucos segundos para o novo ano o homem continua a assistir a cena que tanto lhe tem chamado atenção, a mulher levanta ambas as taças da mesa, alguns fogos de artifício são percebidos, é meia noite, diz o homem em sussurro, a mulher faz um brinde com as duas taças, não há companhia para ela aquela noite, sorve então um pouco do líquido de sua taça e com a outra a derrama dentro do jarro de flores.
Aquela era sua companhia, deduz o homem da praia.
Primeiro de janeiro de dois mil e vinte e um, zero horas, alguns segundos, praia vazia, noite escura, clima quente de verão, o homem que parou por uma hora ou mais para observar, agora caminha novamente vago, distraído, olhando sem perceber, camisa jogada nos ombros, chinelos nas mãos, máscara no rosto, procura entender o que se passou... Missão difícil...
Para um milhão seiscentos e noventa e três mil quatrocentos e quarenta e sete, enquanto escrevia esse conto, o ano de dois mil e vinte não acabou.
FIM
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2020: o ano que não terminou
Short Story2020 foi um ano difícil para todo o mundo, um ano que escancarou muitas verdades sobre nós enquanto humanos, seres sociais, um ano em que fomos obrigados a fazer inúmeras reflexões, um ano em que tivemos que olhar para nós para assim enxergarmos o o...