Frio. Está muito frio aqui. Tento mexer as mãos, mas ambas estão tão geladas. E é nesse momento que eu sinto aquele formigamento tão conhecido. Estou acordando. E isso não é bom. Não acordando como abrindo os olhos depois de uma boa noite de sono, mas interiormente. Meu "eu demônio" está acordando, e, quando isso acontece, salve-se quem puder, porque nem mesmo a "eu humana" consegue controlá-la. Ou me controlar, tanto faz.
Sinto meu corpo se contorcer e queimar por dentro, enquanto me livro das amarras que mantêm minhas mãos e pés unidos como um animal. Coloquem-me em cima de uma fogueira amarrada num galho grosso e terão um ótimo churrasquinho.
Meus olhos estão queimando e gritar é inevitável. Minha garganta arranha e é como se eu estivesse sendo estrangulada, pois dói como o inferno. Sei que minhas íris estão mudando de cor, ficando brilhantes e prateadas antes de atingirem a tonalidade vermelho sangue que sempre faz as pessoas chorarem de medo e se mijarem, e até eu o faria se pudesse me ver. Meus dentes se cerram e parecem concreto quando batem uns nos outros. Até que acaba. Deveria me sentir aliviada após toda a dor, mas só consigo sentir medo pelas pessoas que me prenderam aqui, pois elas estão prestes a viver seus piores pesadelos.
Ela não perdoa. Ela tem garras enormes que perfuram gargantas e as cortam num milésimo de segundo. Ela tem olhos assustadoramente belos sem pupilas, que te enxergam aonde quer que você esteja, ou aonde vá, e é por isso que é impossível escapar. Ela sou eu, ela é o demônio interior que salva pessoas indefesas. Ela poderia ser confundida com um ninja ou um tipo de super-herói. Ela é uma mulher cujos cabelos ficam brancos durante a transformação, cuja pele ganha escamas de peixe em alguns pontos, cuja parte humana desaparece, deixando apenas o instinto de sobrevivência. Ela é a pior parte de mim, e também é a mais forte, a mais obscura. Ela não deveria acordar.
Consigo ver minhas pernas se movendo, enquanto caminho e chuto a porta de metal da minha cela; algumas vozes gritam e então ouço barulhos de balas acertando a parede acima de minha cabeça; algumas pessoas portam rifles e os apontam para mim. Mas, como não me acertam, imagino que não queiram me matar ainda. Acerto o primeiro homem com um chute nas costelas e então com um tapa na garganta, finalizando com um rápido movimento de torção em seu pescoço. Ele cai. O segundo chega com uma faca grande e faz movimentos descoordenados, tentando me acertar. Percebo que ele não deve ser bom nisso, já que perde a arma em minha primeira investida. Dou um salto no ar e o acerto no peito com ambos os pés, fazendo com que ele derrube os homens que estavam atrás. Eles me olham por um momento, surpresos ao verem meus olhos brilharem antes de virarem pó, seus corpos pegando fogo e se dizimando rapidamente. Eles com certeza não esperavam por isso. Não me lembro de ter transformado ninguém em fumaça quando cheguei aqui, isso porque estava desacordada, assim como Ela. Meus olhos ainda brilham e soltam fumaça. Sinto minha boca se retorcer num sorriso malicioso, pego a faca e derrubo os que ainda faltam. Essa é a parte mais confusa de todas. Não a de ter olhos vermelhos e sair matando criminosos por aí, mas a parte em que consigo derrubá-los. Nunca treinei nenhum tipo de luta em toda a minha vida, mas quando Ela acorda, eu sei exatamente o que fazer. É o meu corpo, minhas mãos e meus pés, mas é Ela quem os controla. Ela deve ter sido um tipo de militar ou policial quando ainda era viva, isso antes de virar um demônio e possuir meu corpo. Parece que há pelo menos uma coisa boa em tudo o que está acontecendo: eu fico parecendo uma espiã lutando desse jeito.
Isto também é estranho: falar sobre mim em terceira pessoa, mas é assim que me sinto. Ela não é exatamente eu, somente uma parte. Não sei onde estou, mas, de alguma forma, meus pés sabem para onde ir, e deixo que me guiem. Minha garganta coça e sei que é um sinal de antecedência para o que acontecerá agora. Ela vai adormecer e me deixar na mão. Preciso acabar com isso antes que seja tarde demais, antes que eu volte a ser uma pessoa normal e seja executada por essas pessoas. Parece que não mais serei poupada e enviada para o outro lado do globo depois dessa confusão. Não sei se deveria ficar feliz com essa mudança de planos.
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Ela
Action"Ela" é um conto que eu escrevi em 2016 para a antologia "Poderes", da editora Darda. Traz a história de uma mulher que faz justiça com as próprias mãos, contando com Euma possessão a qual ela chama de Ela.