Lentamente uma gota caía, como uma lágrima vermelha a escorrer pela pele branca de um lençol de seda, conquistando sua liberdade ao voar, por milésimos de segundos que se igualavam as horas, e mergulhar em um mar vermelho que cobria o chão de madeira polida de um apartamento na área nobre de Copacabana. Uma gota, que em sintonia com outras mais que agora fugiam do alcance de meus olhos, molhavam meu rosto sofrido e marcado pelas dezenas de anos que vivi. Estava lançada ao chão, a força não me contemplava com sua presença. Eu, por medo do que poderia ver ao fechar os olhos, ficava acordada, mesmo que todo o meu ser já estivesse aceito o fim trágico que tivera. Eu observava as gotas escorrendo pelo lençol branco da cama, eu observava a vida de quem eu amava escorrendo para fora como lágrimas de sangue, eu via parte de mim me abandonando quando muito ainda tinha a viver, eu vi minha filha morrer.
A imensurável dor é difícil de ser explicada, senão impossível para quem nunca sentiu, a atribuição de culpa ao inexistente alivia o fardo pesado que sobre mim foi lançado, Deus, porque? Ela era tão nova… tão nova. Ver ela daquele jeito me doía, era uma ferida aberta em minha mente e eu sentia que jamais iria se cicatrizar. Eu estava fadada a viver eternamente com essa lembrança, com essas tristeza, com esta marca de Caim, uma maldição, uma punição divina, sim, uma punição. Eu estava lançada ao chão em dor e vendo o sangue de minha pequena escorrendo para que eu fosse uma pessoa melhor? Era isso que eu iria ouvir das igrejas, das pessoas, do mundo? Deus trabalha de maneiras misteriosas, não é mesmo?
Uma nova gota mergulhou no mar de sangue que se espalhava pelo chão, fazendo contrair todo o meu corpo em dor, eu desviava o olhar, mas para todos os lados a dor se tornava pior, mais forte, mais viva, mais insuportável. Os livros na estante que ela nunca terminaria de ler estavam ali, eles possivelmente escondiam segredos sobre a pessoa que eu mais amava e que jamais poderia dizer tudo o que disse no diário diretamente para mim, não era para eu a conhecer, ela não queria que eu conhecesse o profundo de sua mente, então me deixou trancada do lado de fora, eu poderia ter entrado e mudado tudo, eu poderia ter arrumado, organizado, alterado, explicado, eu poderia, eu poderia! Mas não, como um cachorro infestado de pulgas fui deixada à margem da vida dela, deixada do lado de fora, alimentada apenas por meros “feliz dia das mães”, data rara em que ouvia partir dela um “eu te amo”. Abraços se tornaram raros, somente em ocasiões especiais, como natal e aniversário, ela sempre perguntava porque eu a apertava a prendia por tanto tempo envolvida em meus braços, eu me sentia segura tendo-a ali. Lembro-me de mergulhar meu rosto nos finos fios negros de seus cabelos e sentir o cheiro do seu shampoo, me recordando de quando cheirava sua cabeça ainda na época em que cabia em meus braços, minha pequena.
Fiquei deitada no chão por horas, ninguém chegara para me socorrer, mas afinal, quem saberia o que havia ocorrido? Quem poderia imaginar o que as finas paredes desta casa poderia guardar se nem mesmo eu, que ali estava, conseguia crer no que meus olhos viam? Ainda abalada, me ergui e surpreendida fui pela força que ainda havia em mim, minhas pernas não se curvaram e quase que de maneira sobrenatural, me sustentava em toda a minha dor.
Tomei coragem e encarei a cama, o corpo de minha pequenina estava lá, com sua roupa branca manchada de vermelho, com seu sangue escorrendo, com o medo ainda estampado em sua face. A faca, com a qual feri seu corpo, ainda jazia ensanguentada em sua barriga, ocultando um dentre músicos cortes e perfurações em sua pele, eu a havia matado, mas não só, não por querer, eu a livrei do que de mim e de Deus ela tentou esconder. Tornei a olhar o quarto, sabia que tão logo ele seria analisado, por isso tinha de fazer tudo sumir, a começar pelas fotos da namorada de minha filha, pois fotos de algo tão repudiante não poderia minha filha a imagem denegrir, por isso a matei.
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Uma Parte De Mim | Mini Conto
HorrorEu observava as gotas escorrendo pelo lençol branco da cama, eu observava a vida de quem eu amava escorrendo para fora como lágrimas de sangue, eu via uma parte de mim desfalecer em minha frente. Deus, por quê? INFORMAÇÕES TÉCNICAS: Um conto de N...