Parte 6

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Naquela noite, enquanto todos dormiam no chão, ele seguiu sorrateiro na direção do compartimento onde o gajo dormia.
Era um compartimento pequeno com vários colchões jogados pelo chão, onde alguns homens dormiam.
Aproximou-se de Miguel e o sacudiu por um instante. Tomando o cuidado de não falar muito alto, para não acordar os outros, modificar o seu tom de voz e não encara-lo diretamente.
- Mas que diacho está acontecendo marinheiro? -pergunta ele, sentando se no colchão e esfregando os olhos ainda sonolento.
-Está tendo uma confusão entre os marinheiros, senhor-diz Joaquim, falando em uma voz arrastada- Eles estão se matando.
- Com mil demônios. -esbraveja Miguel, levantando-se -Esses malditos vão se arrepender de ter atrapalhado o meu sono.
Os dois então deixaram o compartimento correndo e seguiram pelo convés. Andando lado a lado e com Miguel ainda resmungando baixinho.
- Para onde estais a me levar? -pergunta Miguel- Os marinheiros dormem do outro lado.
Joaquim ainda olhou para os lados para se certificar de que realmente estavam sozinhos. Estavam.
-Sei disso, senhor -diz Joaquim, finalmente erguendo o rosto e encarando Miguel de frente - Não são os marinheiros que estão se matando. Sou eu que vou matar o senhor.
Miguel arregala os olhos e dá um salto para trás.
-Joaquim? O que estais fazendo aqui homem? Como conseguiu entrar no Navio? -pergunta ele, surpreso. - E desde quando voltou a ser marinheiro?
Joaquim o encarava firmemente.
- Desde o dia em que você matou a minha mulher, Seu desgraçado- gritou,puxando o canivete.
Miguel mostrou se bastante surpreso.
- Do que estas a falar? Eu não matei Maria -diz ele
-Matou sim -diz Joaquim, aproximando-se dele e fazendo com que Miguel batesse com as costas na mureta do convés. -Assim como matou o pobre do meu amigo Ramon.
-Eu não matei o marinheiro -diz ele. - Baixa essa faca e vamos conversar. Está havendo uma grande confusão aqui. Nós sempre fomos amigos...
- Isso até você ter me largado para morrer naquela floresta e depois ter matado a minha mulher. Você não disse que acabaria com a minha vida? Pois conseguiu.Me tirou minha amada Maria. Mas isso. Ah, isso não vai ficar assim -diz Joaquim e afunda o canivete no estômago de Miguel.
O homem solta um terrível berro de dor e cai de joelhos se esvaindo em uma poça de sangue.
- Para, Joaquim-grita ele- Você está enganado.Eu não matei Maria. Joaquim estava irredutível e desferiu no antigo amigo um chute no rosto.
Miguel rolou para o lado com o rosto sangrando e gritando por socorro.
Joaquim, ainda com o canivete em punho, já ia se aproximando novamente para golpeá-lo quando o capitão apareceu junto com alguns marinheiros.
- O que estas havendo aqui ? -grita ele e fica assustado com o que vê. - Minha nossa. Prendam esse marujo agora mesmo e levem o ferido para ser tratado.
Joaquim se manteve de arma em punho enquanto os outros se aproximavam para agarra-lo.
- É melhor não resistir, marinheiro-diz o comandante. -Ou será pior para você.
Joaquim sabia que de uma forma ou de outra estava perdido e então resolveu revidar.
Todos os que se aproximavam ele ameaçava furar com o canivete.
Até que todos os marinheiros o cercaram de uma só vez e ele não teve como fugir.
Ainda chegou a ferir uns dois ou três,mas não mais que isso.
Os padres e jesuítas que estavam a bordo pediram que ele fosse preso em um dos porões e lá ficasse até o fim da viagem, onde depois seria julgado e tratado conforme a lei ordenava.
No entanto, os marinheiros e demais tripulantes ficaram enfurecidos com a ousadia do marinheiro e, cansados dos dias tediosos daquela viagem, resolveram se divertir um pouco.
Sob os protestos dos religiosos, Joaquim foi amarrado em um dos mastros com grossas cordas, que dilaceravam suas carnes, e lá foi destinado a ficar até o fim da viagem.

O dia seguinte se passou com fortes rajadas de vento e uma chuva torrencial e o pobre Joaquim se mantinha amarrado ao mastro com marinheiros passando a todo o momento para rir dele.
Quando a noite chegou,Joaquim encarava o céu, agora limpo.
Suas roupas estavam encharcadas e todo o seu corpo tremia de frio.
Ele olhava para a lua esplendorosa no céu escuro e, de repente, o seu corpo começou a estremecer.
Primeiro achou que fosse alguma doença que agora o acometia depois de um dia inteiro ao relento com um forte temporal a envolve-lo.
O seu corpo convulsionava e ele achou que iria morrer. Foi então que viu os pêlos...
Uma grande quantidade de pêlos estava crescendo de uma maneira assustadora em seus braços e pernas. Sua roupa parecia ter encolhido e aos poucos foi se rasgando.
Ele tremia convulsivamente e tentava entender o que estava acontecendo.
As amarras, de repente, pareceram bastante frágeis e ele as rompeu com um único puxão.
Sentia sede e fome e seguiu andando, cambaleante, pelo convés, ainda amedrontado com o pêlo grosso e escuro que nascia em seus braços.

Chegou a ala onde os marinheiros dormiam no chão e, ao vê-los,sua barriga roncou.
Sem saber direto o que estava fazendo, se lançou em cima de um deles e começou a morde-lo.
Os gritos do homem acordaram os outros que começaram a correr desesperados e gritando pela caravela.
Joaquim sentiu o gosto do sangue do marinheiro em seus lábios e viu que era bom,como o mais delicioso e delicado dos vinhos.
Mordeu novamente e dessa vez arrancou um pedaço de carne a qual mastigou, meio hesitante a princípio, mas tinha um sabor e uma macieza incrivelmente deliciosas. Algo como ele nunca havia experimentado antes.
Agora, sem hesitamento algum, voltou a morde-lo e tirou outro pedaço, enquanto os outros tripulantes, tremendo, de armas em punho, disparavam contra ele.
E o mais incrível era que ele não sentia dor alguma.
Depois de saborear boa parte do marinheiro, ele voltou a levantar e passou o braço pela boca tirando as manchas de sangue.
A fome ainda era tremenda e precisava de mais carne.
Os tripulantes pararam de atirar imediatamente e, por um instante, ficaram congelados onde estavam. O encarando.
Os pêlos agora tinham coberto boa parte do seu corpo e tinham lhe dado a aparência de um lobo magrelo e bípede.
Com grandes olhos negros, dentes grandes, brancos e afiados que ficavam sempre a mostra, além de unhas grandes e grossas como garras.
Ele olhou para a lua novamente e soltou uma espécie de uivo.
E isso foi o bastante para os tripulantes começarem a correr.

Aquilo despertou nele algum instinto primitivo e ferino e imaginou os tripulantes como ovelhas as quais precisava capturar para se alimentar.
E então disparou a correr atrás deles, uivando.
O desespero foi total.
Pessoas corriam gritando, outras ainda tentavam disparar contra o monstro e ainda outros, tomados de pavor, se lançavam ao mar.
A matança aquela noite foi terrível e no dia seguinte havia milhares de corpos decapitados e aos pedaços pelo convés.
O chão parecia coberto por um tapete vermelho escuro, tamanha era a quantidade de sangue.
Alguns dos poucos jesuítas que sobreviveram encontraram o corpo de Joaquim, nu, caído junto ao catre.
Todos queriam atira-lo ao mar,mas os jesuítas foram invictos na sua decisão de que deviam apenas prendê-lo em um dos porões.
- Ele é uma ovelha desgarrada e nossa missão é traze-lo de volta para o caminho do senhor - disse um deles.
Muitos não concordaram,mas os jesuítas tinham grande influência sobre eles.
De modo que Joaquim foi encarcerado dentro de um dos porões do navio.

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