Nada neste mundo é tão mágico e tão assustador quanto uma moça prestes a se tornar mulher.
Esta moça específica nunca havia sentido o poder que tinha só por existir em um espaço dominado por homens. Mas, naquele dia, rodeada de homens, esse poder irradiava dela. "Sou intocável." Os homens orbitavam em volta como se ela fosse a Terra, e eles, os res- peitosos – porém distantes – Sol, Lua e estrelas. Era uma espécie de magia.
Um véu obscurecia e borrava os contornos do mundo ao redor. Estava sentada na sela com uma postura tão ereta que lhe dava dor nas costas. Não remexia os dedos dos pés dentro das botas com as quais estavam tão desacostumados. Fingia ser uma pintura.
– Não posso acreditar que nenhuma freira do convento se dis- pôs a viajar com a senhorita – reclamou Brangien, tentando limpar a fina camada de poeira que batizava a jornada da duas. Então, como se não tivesse consciência de que falara em voz alta, baixou a cabeça. – Mas é claro que estou muito feliz e honrada por estar aqui.
O sorriso que serviu de resposta ao pedido de desculpas de Brangien não foi percebido.
– Claro – disse a moça, mas suas palavras não foram muito convincentes. Podia fazer melhor. Tinha que fazer. – Também não gosto muito de viajar e agradeço sua gentileza de ser minha acompa- nhante nessa longa jornada. Eu me sentiria muito sozinha sem você.
Estavam cercadas de gente. Mas, para aquelas pessoas, a moça coberta de tecidos azuis e carmesins era uma mercadoria que deve- ria ser protegida e entregue, sã e salva, para o novo dono. Ela, que tinha dezesseis anos, torcia, com todas as forças, para que Brangien, de dezoito, se tornasse sua amiga. Precisaria de uma amiga. Jamais tivera uma. Mas isso também tornaria tudo mais complicado. Ela tinha tantas coisas preciosas escondidas. Ter outra mulher o tempo todo consigo era algo desconhecido e perigoso. Os olhos de Brangien eram pretos como o seu cabelo. E sugeriam inteligência. Por sorte, esses olhos veriam apenas o que estava na superfície. Brangien per- cebeu que ela estava observando-a e lhe deu um sorriso indeciso.
Concentrada em sua companheira, a moça não percebeu a mu- dança logo de início. Uma mudança sutil, uma diminuição na tensão: a primeira vez que respirava de verdade em duas semanas. Inclinou a cabeça para trás e fechou os olhos, grata pelo abrigo que a folhagem verdejante lhe dava do sol. Uma floresta. Se não estivesse cercada de homens e cavalos por todos os lados, teria abraçado as árvores. Passado os dedos nos veios para descobrir a história de cada uma.
– Fechem o círculo! – ordenou Sir Bors. Sob o pesado arco de galhos, o grito foi abafado. Ele era um homem que não estava acostumado a ser silenciado. Até seu bigode se eriçou, de tão ofen- dido. Segurou as rédeas com os dentes e empunhou a espada com o braço bom. A moça despertou do sonho de olhos abertos e viu que os cavalos haviam sido contaminados pelo medo dos homens. Estavam inquietos e batiam os cascos no chão, revirando os olhos à procura da ameaça, assim como seus cavaleiros. Uma lufada de vento levantou o véu. A moça cruzou o olhar com um dos homens – Mordred, três anos mais velho do que ela, que logo se tornaria seu sobrinho. Seus lábios delicados estavam levantados no canto, como se achasse graça. Será que tinha percebido seu delírio antes que ela se desse conta de que não deveria ter se agradado da floresta?
– O que foi? – perguntou, e foi logo virando o rosto para se es- quivar de Mordred, que estava prestando atenção demais nela. "Seja uma pintura."
Brangien tremeu e se encolheu debaixo da capa.
– As árvores.
Que se acumulavam dos dois lados da estrada, com seus troncos
retorcidos e raízes profundas. Os galhos se entrelaçavam, formando um túnel, lá no alto. A moça não entendia qual era a ameaça. Não se ouvia nem um galhinho sequer se partindo. Nem um farfalhar de folhas.
Nada interrompia a beleza da floresta. A não ser ela mesma e os homens que a rodeavam.
– O que têm as árvores? – perguntou.
Foi Mordred que respondeu. Estava com a expressão séria. Mas sua voz parecia cantar. Era divertida e grave.
– Elas não estavam aqui quando fomos buscá-la.
Ainda empunhando a espada, Sir Bors estalou a língua, e seu cavalo voltou a avançar. Os homens se reuniram em volta dela e de Brangien. A paz e o alívio que a moça havia sentido por estar rodeada de árvores desapareceu, destruída pelo medo deles, que se apoderavam de cada espaço por onde passavam.
– O que ele quer dizer com "elas não estavam aqui"? – sussurrou, dirigindo-se a Brangien, que estava falando algo, sem produzir som. Inclinou-se para a frente, para arrumar o véu da moça, e também respondeu sussurrando, como se temesse que as árvores ouvissem:
– Há quatro dias, quando passamos por esta região... não havia nenhuma floresta. Todo esse pedaço de terra havia sido desmatado. Era de fazenda.
– Será que fizemos uma rota diferente sem perceber?
Brangien sacudiu a cabeça. Seu rosto era um borrão formado por sobrancelhas escuras e lábios vermelhos.
– Há uma hora, passamos por alguns rochedos caídos. Parecia que um gigante estava brincando e deixou seus brinquedos para trás. Lembro muito claramente. É a mesma estrada.
Uma folha foi caindo das árvores e pousou, suave como uma oração, no ombro de Brangien. Ela soltou um gritinho de medo.
Era só uma questão de esticar o braço e tirar a folha do ombro de Brangien. A moça tinha vontade de levá-la aos olhos, examinar a história dos seus veios. Mas, ao tocá-la, sentiu instantaneamente que a folha tinha dentes. E a atirou no chão da floresta. Até olhou para os próprios dedos, procurando sangue, mas é claro que não havia nada.
Brangien estremeceu e disse:
– Há um vilarejo não muito longe daqui. Podemos nos esconder lá. – Esconder?
Ainda faltava um dia de viagem até chegarem ao destino. Ela
queria que aquilo terminasse logo. Que tudo fosse feito e arranjado. Só de pensar em ficar espremida com aqueles homens enquanto esperavam – pelo quê, para lutar contra uma floresta? – lhe dava vontade de arrancar os sapatos, o véu, implorar às árvores para que pudessem passar em segurança. Mas elas não entenderiam.
Afinal de contas, agora pertenciam a lados opostos.
"Desculpe", pensou, sabendo que as árvores não ouviriam. Desejando poder explicar.
Brangien gritou de novo, cobrindo a boca com as mãos, horro- rizada. Os homens que as cercavam pararam abruptamente. Ainda estavam rodeados pela vegetação. Tudo passava, de modo abafado, através do véu. Vultos se esgueiravam, saindo da floresta. Enormes penhascos cobertos de limo e cipós que se entrelaçavam.
Que se danasse o recato. Ela arrancou o véu. O mundo ficou completamente nítido, de um modo surpreendente.
Os vultos não eram penhascos. Eram casas. Casebres muito pa- recidos com aqueles pelos quais já haviam passado, feitos de pedra caiada e vigas cobertas de sapê, que iam até o chão. Mas, em vez da fumaça que deveria estar saindo do telhado, havia flores. Em vez de portas, havia cortinas de cipós. Era um vilarejo que a natureza retomara. Se lhe pedissem para adivinhar, diria que tinha sido aban- donado havia muitas gerações.
– Vi uma criança – sussurrou Brangien, entre os dedos. – O me- nino vendia pão, adulterando o peso com pedras. Fiquei tão brava com ele...
– Onde estão as pessoas? – perguntou Sir Bors.
– Não devemos nos demorar por aqui – respondeu Mordred, aproximando o cavalo do dela. – Cerquem a princesa! Depressa!
À medida que ia sendo arrastada pelo movimento dos guardas, viu uma última rocha coberta de cipós, ou talvez fosse um toco de árvore. Do tamanho exato de um menino pequeno oferecendo pão ruim.
Só pararam quando o crepúsculo se apoderou do mundo, de modo muito mais sutil que a floresta se apoderara daquele vilarejo desa- fortunado. Os homens observavam os campos ao redor com descon- fiança, como se as árvores fossem brotar do nada, empalando-os. E talvez brotassem. Até ela estava nervosa. Jamais olhara para as coisas verdejantes e secretas do mundo com medo. Era uma boa lição, mas preferia que o vilarejo não tivesse pago o preço pela sua educação.
Não podiam avançar muito mais na escuridão sem correr o risco de ferir os cavalos. Haviam passado a primeira noite juntos em uma estalagem. Brangien dormira com ela na melhor cama que a estala- gem tinha a oferecer. E roncara de leve, um som amistoso, que lhe fez companhia. Sem conseguir dormir, a moça teve vontade de descer a escada, ir ao encontro dos cavalos nos estábulos, dormir lá fora.
Naquela noite, o seu desejo seria realizado. Os homens se reve- zaram, de guarda. Brangien se ocupou de desenrolar os colchonetes, reclamando por não terem instalações adequadas para dormir.
– Eu não me importo. – Mais uma vez, a moça sorriu para Brangien, e o sorriso passou despercebido naquela escuridão.
– Eu me importo – resmungou Brangien. Talvez achasse que o véu obscurecia a audição, assim como a visão.
Apesar da fogueira que crepitava, desafiando a noite, o frio, os animais selvagens e rastejantes, ainda as estrelas estavam à espera. A humanidade não havia descoberto uma maneira de derrotá-las. A moça localizou suas constelações favoritas. A Mulher Afogada. O Rio Caudaloso. A Praia de Pedregulhos. As estrelas até poderiam ter reluzido para alertá-la, mas ela não percebeu, por causa das faís- cas que a fogueira lançava nos céus.
Exigiram mais dos cavalos no dia seguinte. A moça descobriu que tinha menos medo da floresta que deixavam para trás do que da cidade que os aguardava.
A pouca paz que conseguia encontrar vinha do sacolejar e dos sola- vancos do cavalo que a carregava. Ter contato físico com cavalos é algo profundamente reconfortante. São animais calmos e decididos. Ela ficou acariciando a crina da égua, distraída. Seu próprio cabelo preto fora trançado pela manhã por Brangien, entrelaçado com fios de ouro.
– Quantos nós! – reclamara Brangien.
Mas não enxergara o propósito deles. Não suspeitara de nada. Será que não?
Já havia complicações imprevistas demais. Como a moça poderia ter adivinhado que aquela jovem examinaria seu cabelo com tanto cuidado? E havia Mordred, sempre a observar. Era belo, tinha um rosto lisinho e olhos verde-musgo. Fazia a moça lembrar-se da elegância das cobras, deslizando pela grama. Mas, quando o pegou olhando-a fixamente, percebeu que o sorriso tinha muito mais de lobo do que de cobra.
Os demais cavaleiros, pelo menos, não prestavam a menor aten- ção nela, a não ser por obrigação. Sir Bors os fazia avançar ainda mais rápido. Passaram por pequenos povoados, onde as casas se espremiam, como os homens haviam feito lá na floresta, protegendo uns aos outros e olhando para a frente, para as terras circundantes, com medo e afronta. Ela tinha vontade de descer do cavalo, conhe- cer as pessoas, entender por que viviam ali, sua determinação para domar a natureza selvagem, expondo-se a incontáveis ameaças. Mas só conseguia ver vultos borrados, folhagens e faíscas douradas do mundo que a cercava. O véu era a versão mais íntima dos guardas, um isolamento do mundo.
Parou de se irritar com o ritmo de Sir Bors e torceu para irem ainda mais rápido. Ficaria feliz de deixar aquela jornada para trás, de ver de perto as ameaças à espera, para que pudesse se preparar para enfrentá-las.
E então chegaram ao rio.
Naquele lugar, não conseguia se decidir a respeito de nada, pelo jeito. Agora estava feliz de estar de véu. Que escondia a perversidade ostensiva da água e o pânico daqueles que a rodeavam.
– Não existe um caminho que contorne o rio? – tentou falar, com um tom de voz ao mesmo tempo gracioso e imperioso. Não ob- teve sucesso. O tom refletiu exatamente o que estava sentindo: pavor.
– Os balseiros garantirão a segurança de nossa travessia – afirmou
Sir Bors, como se fosse um fato. A moça ansiava por se agarrar à certeza do cavaleiro, mas a confiança do homem passou reto por ela, ficando fora de alcance.
– Eu percorreria uma distância maior de bom grado, se isso nos impedisse de atravessar o rio – afirmou.
– A senhorita está tremendo, milady. – Sem mais nem menos, Mordred estava mais uma vez do lado dela. – Por acaso não confia em nós?
– Não gosto de água – sussurrou a moça. A garganta se fechou, porque a frase expressou de um modo muito inadequado o pavor que sentia no fundo da alma. Uma lembrança – águas turvas e fun- das acima da sua cabeça, ao redor, pressionando-a por todos os la- dos, preenchendo-a – veio à tona, e ela tentou expulsá-la com todas as forças, afastando esses pensamentos com a mesma velocidade que afastaria a mão de um ferro em brasa.
– Sendo assim, temo que a senhorita não vá gostar do seu novo lar.
– O que você quer dizer com isso?
Pelo tom de voz, parecia que Mordred estava se desculpando, mas a moça não conseguia ver sua expressão bem o suficiente para saber se refletia suas palavras.
– Ninguém lhe contou?
– Contou o quê?
– Odiaria estragar a surpresa.
O tom de voz de Mordred fora uma mentira, então. Ele a detes-
tava. A moça podia sentir. E não sabia o que fizera, naqueles dois dias que passaram juntos, para merecer essa ira.
O farfalhar da água levava consigo qualquer outro pensamento, concorrendo apenas com as batidas do seu coração e a respiração em pânico, presa dentro daquele véu, que formava uma nuvem úmida de pavor. Sir Bors a ajudou a descer do cavalo, e a moça ficou ao lado de Brangien, perdida em seu próprio mundo, distraída e distante.
– Milady? – disse Sir Bors.
A moça se deu conta de que aquela não era a primeira vez que o cavaleiro se dirigia a ela e falou:
– Sim?
– A balsa está pronta.
Tentou andar na direção da embarcação. Não conseguia obrigar
o corpo a se movimentar. O pavor era tão intenso, tão esmagador, que não conseguia sequer se inclinar naquela direção.
Brangien, que finalmente percebera que havia alguma coisa er- rada, ficou na frente dela. A moça se aproximou, assumindo uma expressão mais dura, por trás do véu.
– A senhorita está com medo – afirmou, surpresa. E então seu tom se acalmou. Pela primeira vez, parecia que estava falando com uma pessoa e não com um título. – Posso segurar sua mão, se quiser. E também sei nadar. Não conte para ninguém. Mas prometo que a levarei em segurança até o outro lado do rio. – Brangien então segurou sua mão, bem apertado.
A moça segurou a mão de Brangien, agradecida, e a apertou como se já estivesse se afogando e aquela mão fosse a única coisa que a separava da aniquilação.
E isso que não tinha sequer dado um passo em direção ao rio! Todos aqueles esforços seriam em vão antes mesmo que chegasse até o rei, porque não conseguia superar aquele medo absurdo. A moça se odiou e odiou cada uma das decisões que a tinham levado até ali.
– Venha. – As palavras de Sir Bors tinham um certo tom de impaciência. – Estão nos aguardando antes do cair da noite. Precisamos seguir viagem.
Brangien a puxou sutilmente. Um passo, depois outro, depois mais um.
A balsa sob os seus pés afundou e sacolejou. A moça virou para trás, disposta a correr de volta até a margem, mas os homens estavam
ali. E avançaram, um mar de peitos largos, couro e metal inflexíveis. Ela tropeçou e se segurou em Brangien.
Deixou escapar um soluço. Estava amedrontada demais para se sentir envergonhada.
Brangien, a única coisa estável em um mundo de turbulência e movimento, a abraçou. Se caísse no rio, tinha certeza – certeza –, seria aniquilada. A água iria se apoderar dela. A moça deixaria de existir. Como estava tomada pelo medo, a travessia poderia tanto levar minutos quanto horas. Parecia infinita.
– Ajudem-me – disse Brangien. – Não consigo me mexer de tanto que ela me aperta. Acho que a senhorita está paralisada.
– Não seria apropriado se a tocássemos – resmungou Sir Bors.
– Senhor do céu – falou Mordred. – Deixem comigo. Se ele quiser me matar por ter tocado em sua noiva, está no seu direito, desde que eu possa dormir em minha própria cama uma última vez.
A moça sentiu braços levantando seu corpo, segurando-a por trás dos joelhos e a levando no colo, como se fosse uma criança. Afundou o rosto no peito dele, inspirando os aromas de couro e tecido. Jamais se sentira tão grata por tocar algo palpável. Algo verdadeiro.
– Milady... – A voz de Mordred estava tão aveludada quanto o seu cabelo, cabelo em que a moça se agarrara como se tivesse garras. – Vou levá-la em segurança até a terra firme. A senhorita foi tão corajosa na floresta... O que é um riacho perto disso?
Então a pôs no chão, mantendo as mãos na cintura dela. A moça cambaleou. Agora que a ameaça passara, foi tomada pela vergonha. Como poderia ser forte, como poderia completar sua missão, se sequer conseguia atravessar um rio?
Um pedido de desculpas brotou de seus lábios. Mas ela logo o descartou. "Seja o que eles esperam que você seja."
Endireitou as roupas com cuidado. Como uma rainha faria.
– Não gosto de água – afirmou. Como se fosse um fato e não um pedido de desculpas. E então apertou a mão que Brangien lhe estendia e voltou a montar no cavalo. – Podemos prosseguir?
A caminho do convento, vira castelos de madeira que brotavam do chão feito a perversão de uma floresta. E até um castelo de pedra – uma construção atarracada, com cara de brava.
Nada disso poderia tê-la preparado para Camelot.
A área em volta era cultivada por quilômetros e quilômetros. Campos dividiam a natureza selvagem em fileiras ordenadas e per- feitas, com a promessa de colheitas e de prosperidade. Apesar da presença de mais vilarejos e cidades pequenas, não tinham visto ninguém, e isso não inspirava o mesmo medo e a mesma descon- fiança que a floresta. Pelo contrário: os homens que a cercavam foram ficando cada vez mais relaxados e, ao mesmo tempo, mais agitados – mas de entusiasmo. Então ela viu o porquê. Tirou o véu. Haviam chegado.
Camelot era uma montanha. Uma montanha de fato. Um rio a separara da terra. Ao longo de tantos anos que sua mente não conseguia sequer imaginar, a água se partira ao meio, avançara pe- los dois lados e erodira a rocha até restar apenas a parte do meio. Cascateava violentamente dos dois lados. Atrás de Camelot, esten- dia-se um grande lago frio e desconhecido, alimentado pelos rios gêmeos, dando luz a um único rio extenso no extremo oposto.
Sobre a montanha, cercada de água por todos os lados, havia uma fortaleza, que não fora esculpida pela natureza, mas por gera- ções e gerações de mãos. A rocha cinzenta fora entalhada para criar contornos ornamentados. Volutas e nós, rostos de demônios com janelas no lugar dos olhos, escadas que se encaracolavam pelo lado de fora, ladeadas apenas pelo vazio e pelo castelo.
A cidade de Camelot ficava no declive íngreme atrás da fortaleza. A maioria das casas fora construída da mesma rocha, mas havia algumas estruturas de madeira entremeadas. Ruas sulcavam as construções. Veias e artérias, todas levando até o castelo, o coração de Camelot. Nem todos os telhados eram de sapê. A maioria era de ardósia, cujo azul- -escuro se misturava com a palha, fazendo com que o castelo parecesse estar aninhado em uma colcha de retalhos de pedra, sapê e madeira.
Ela jamais pensara que homens seriam capazes de criar uma cidade tão magnífica.
– É incrível, não é mesmo? – comentou Mordred, com a voz tingida de inveja. Tinha ciúme da própria cidade. Talvez, ao vê-la através dos olhos da moça, pudesse enxergá-la de outro ângulo. Era algo a ser cobiçado, certamente.
Chegaram mais perto. A moça se concentrou apenas no castelo. Tentou ignorar o rugir incessante de rios e cascatas. Tentou ignorar o fato de que seria obrigada a atravessar o lago para chegar ao novo lar.
Não obteve sucesso.
Nas margens do lago, havia um festival à espera. Haviam erigido tendas, bandeiras tremulavam ao vento. Havia música, e o aroma de carne assada os chamava, mais adiante. Os homens se endireitaram em suas selas. A moça fez a mesma coisa.
Pararam no limite da área destinada ao festival. Havia centenas de pessoas esperando, todas olhando para a ela. Que ficou feliz por ter recolocado o véu que a escondia daquela gente e escondia aquela gente dela. Jamais vira tantas pessoas reunidas. Achara o convento muito cheio e a companhia dos cavaleiros, opressiva, mas isso tudo era um mero riacho comparado ao rugir daquele oceano.
Um silêncio tomou conta da multidão, que ondeava feito um campo de trigo. Alguém avançava no meio das pessoas, que se afas- tavam para dar passagem e depois tornavam a se juntar. O mur- múrio que acompanhava a caminhada daquele rapaz era respeitoso.
Amoroso. A moça sentiu que aquelas pessoas estavam lá mais para estar perto dele do que para vê-la.
O rapaz se aproximou de seu cavalo, então parou. A multidão até podia estar em silêncio, mas o corpo e os pensamentos dela eram pura agitação.
Sir Bors limpou a garganta, e sua voz retumbante parecia per- feita para aquele ambiente.
– Sua alteza, Rei Arthur de Camelot, eu vos apresento a princesa Guinevere de Camelerd, filha do Rei Leodegrance.
O Rei Arthur fez uma reverência e, em seguida, estendeu a mão. Que engoliu a da moça. Era uma mão forte, firme, robusta. Calejada e com um senso de propósito que pulsava, cálido, transmitido pelo rei para o corpo dela. Ela começou a descer do cavalo. Mas, por causa dos rios, do lago e da viagem, ainda estava trêmula. Arthur facilitou a tarefa: tirou-a de cima do cavalo, rodopiou-a uma única vez e, então, a colocou no chão, fazendo uma reverência cortês. A multidão rugiu em aprovação, abafando o som dos rios.
Tirou o véu dela. O Rei Arthur lhe foi revelado, como se fosse o Sol se libertando das nuvens. Como Camelot, parecia ter sido es- culpido direto da natureza por uma mão amável e paciente. Ombros largos e cintura fina. Mais alto que qualquer homem que já vira. O rosto, ainda jovem aos dezoito anos, era firme e resoluto. Os olhos eram castanhos, inteligentes, mas as rugas ao redor deles contavam histórias de tempos passados fora do castelo, sorrindo. Os lábios eram carnudos e macios; seus traços, fortes. O cabelo era tão curto que surpreendia, tosado quase rente à pele. Todos os cavaleiros que ela conhecera tinham cabelo longo. Arthur usava uma coroa de prata simples, com o mesmo desembaraço que um fazendeiro usa seu chapéu. A moça não conseguia imaginá-lo sem a coroa.
Ele também a observou. Ela ficou imaginando o que o rei via. O que todas aquelas pessoas viam quando olhavam para o seu cabelo
longo, tão escuro que quase parecia azul sob a luz do Sol. Para as sobrancelhas arqueadas e expressivas. Para o nariz cheio de sardas. As sardas contavam a verdade sobre a vida que levara até então. Uma vida de sol, liberdade e alegria. Nenhum convento seria capaz de produzir aquelas sardas.
O rei segurou a mão dela e a pressionou contra o seu rosto quente. Em seguida, a levantou e voltou a olhar para a multidão.
– Eis Guinevere, sua futura rainha!
A multidão rugiu, gritando o nome de Guinevere, sem parar. Ah, se aquele fosse seu verdadeiro nome...Dedo sobre a folha. Folha, chão da floresta, raiz. Raiz, mais raiz, mais raiz, teias que se entrelaçam espalhadas pela terra. Raiz, solo, água.
Água que se infiltra e se acumula na argila preta e macia. Bate na pedra. Cai, se divide e se junta, flui, flui.
Água, mais água, mais água, raiz, árvore, seiva.
Seiva, terra que sustentava a ausência de um corpo.
A rainha de Arthur não tem gosto de rainha. Tem gosto de quê? A verdadeira
rainha, a Rainha das Trevas, a rainha generosa, cruel e selvagem se pergunta. Não obtém resposta. Mas tem olhos. Tantos olhos. Que irão enxergar a verdade.
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A farsa de Guinivere
FantasyGuinevere chegou a Camelot para casar-se com um desconhecido: o carismático Rei Arthur. Foi Merlin, o velho feiticeiro, que enviou a princesa para desposar e proteger o monarca dos perigos que assombram as fronteiras da cidade e daqueles que esperam...