“...ela havia ido ao quadro mas não estava de volta, continuava ao lado do gato olhando para além da janela onde ninguém podia ver o que eles viam...”
Julio Cortázar
Acaba de comer a refeição que lhe foi preparada e se limpa antes de sair. Sem avisar ninguém, deixa a casa com discrição tal que todos mesmo acordados não percebem sua saída. Ganhando o quintal olha para o gramado, passa sentindo o cheiro bom da grama e a presença mansa do Boder Colly dormindo na casa de madeira.
Na rua olha sem interesse o transito rápido, mas vazio do fim de noite, luzes bruxuleantes e amareladas. Gosta a luz da bojuda lua cheia, se olham com prístina pureza, um olhar que em nada se alteraram desde sempre. Sente no ar o cheiro da estação, deixa o vento, outro secular, lhe acariciar um pouco, mas sempre seguindo com passos decididos.
Entre bêbados caídos na sarjeta, travestis de bigodes mal raspados encostados em portas de aço de açougues, entre cheiro de droga e carniça de carne, prostitutas negras fedendo a cigarros baratos e mijo, vadios diversos espreitando em busca da tolice ou da bondade para suas maquinações, policiais cheirando a ranço e buscando propinas. Atento aos lugares que passa, examina seus companheiros noturnos, mas não se sente um deles, segue.
Pára diante do ponto de chegada, antes de entrar detêm-se, silencioso com olhos grandes na casa – destituída da presença paterna. Entra pelos fundos, observando as luzes e os sons que denunciam a vida se movendo lá dentro: na cozinha com o preparo da janta, na sala diante da televisão uma vida que escorre lenta - cheia de sonhos falsos, e no quarto da irmã mais velha, onde o heavy metal preenche o ar, somente as luzes azuladas dos leds do computador, som e dvd.
Sorrateiro. Invisível. Silencioso. Entra pela janela da copa aos fundos, ganha a cozinha sem emitir nenhum som, perfeito se esgueira e surge pelas costas da mãe da família, está distraída cozinhando. Imóvel olha a matrona de cima em baixo. Imóvel permanece até que ela se vira e assustasse com a presença. “Que susto Fernando, seu ladrãozinho, some daqui! Não gosto de ninguém na cozinha enquanto preparo a comida!” A família suspeita de sua vida dupla, dada sua natureza, mas o fato é que diante do quanto sua presença faz bem as crianças na ausência paterna, não lhe é pedida fidelidade.
Sem nada emitir sai da cozinha divertindo-se com o tom da mãe e parte para o quarto de Juliana. Pelo corredor vê as crianças diante da TV, catatônicas sequer percebem sua passagem, a luz azulada repete em seus olhos a ilusão do ecrã, e dos olhos a réplica segue para suas mentes pouco críticas.
Na porta do quarto detém-se, acostuma os ouvidos ao som pesado, entra sem pedir permissão. Deitada na cama ela o recebe nos braços sem nenhuma resistência. Com saudade doida, ela o abraça, cheira a cabeça, corre a mão por todo o corpo e lhe repreende simulada. “Já eram horas, né? Humm, Luiz Fernando, seu gato rueiro. Deixe ver se andou arrumando briga. Ah, aposto que pegou piolho.” Dizendo vai devassando o pelo malhado do felino, que liga seu motor de afeto, ronronando um ruído único com que rouba a atenção de seus lares e embala o coração de Juliana.
Desfazendo-se do abraço afetuoso, languido pelo sono, sai do quarto da moça e retorna para cozinha, senta-se na mesa e sendo percebido pela matrona em carne generosa, ancas e busto farto, é alvo das confidências de uma vida doméstica, ao que demostra interesse. Olhando as botas imensas vistas como se fosse parte dele ali do alto da cadeira desdenha daquela aparente solidez de borracha, vislumbra a transitoriedade da vida, o vapor emanando das panelas, o fluxo do sexo da mulher escorrendo lento, o tempo encardindo as coisas todas, o vento chiando no jardim, a sua vida entre a animalidade de um lar e sua humanidade nesta outra casa. Ante o desvelamento sela seu duplo: mártir e amante do que vislumbra.
“Luiz Fernando, você traduz o meu profundo e secreto desejo, vadio!” Antes que possa emitir qualquer resposta suas sete vidas de gato se esvai e deixa para a mulher seu silêncio e prenuncio.
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Ladrão
Short Story"...ela havia ido ao quadro mas não estava de volta, continuava ao lado do gato olhando para além da janela onde ninguém podia ver o que eles viam..." Julio Cortázar Acaba de comer a refeição que lhe foi preparada e se limpa antes de sair. S...